O Globo
Quando a história definitiva do governo
passado for escrita, caberá ao incrível caso das joias sauditas um capítulo
especial. O episódio, com seus detalhes surreais, virou tema obrigatório nas
conversas de bar de Brasília, em parte pela desfaçatez, em parte pelo
amadorismo.
Apesar de não ser surpreendente, é difícil
se acostumar com a ideia de termos sido governados por uma turma de aloprados
de farda que acham normal carregar diamantes de R$ 16,5 milhões escondidos na
mochila — pedras preciosas que deveriam ser patrimônio público, mas que, se não
fossem os auditores da Receita Federal, teriam ido parar na casa de algum
Bolsonaro.
Na hora de falar a sério, porém, o que
preocupa os gabinetes do Planalto é algo bem menos folclórico e muito mais
valioso. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
resumiu a situação num discurso cheio de recados, na Associação Comercial de
São Paulo.
“Teremos
um tempo para que o governo se estabilize internamente, porque hoje o governo
ainda não tem uma base consistente nem na Câmara nem no Senado para enfrentar
matérias de maioria simples, quanto mais matérias de quórum constitucional”.
Só que, para Lira, esse “tempo” está acabando. “O rumo, nós precisamos defini-lo agora em março”, afirmou.
E, como em política não existe vácuo, o
próprio Lira já foi dando o seu “rumo”.
“Temos um governo que foi eleito, muito
embora com margem de votos mínima, que precisa entender que, do último governo
para hoje, nós temos o BC independente, nós temos agências reguladoras, lei das
estatais, um Congresso que hoje tem uma atribuição mais ampla, e que isso
precisa ser negociado com bom senso, com muita conversa, com amplitude, com
clareza, com transparência, mas com rumo”, disse o presidente da Câmara.
Não é preciso ser ph.D. em política para
captar a mensagem. Em menos de cinco minutos, Lira disse a Lula que
seu governo 1) está sem rumo 2) não tem poder para aprovar nada no Congresso
sem ele e 3) também não pode se dar ao luxo de fazer o que bem entender, porque
foi eleito por margem pequena de votos, e o Brasil mudou muito desde a última
vez em que o PT ocupou
o poder.
Por muito menos, o presidente do Banco
Central, Roberto
Campos eto, foi espinafrado publicamente por Lula, Gleisi
Hoffmann e inúmeros petistas nas redes sociais. O ministro da
Fazenda, Fernando
Haddad, apanhou a valer por ter proposto o fim do desconto dos
impostos federais sobre os combustíveis.
Ao ministro de Minas e Energia, Alexandre
Silveira, a presidente do PT afirmou que o partido não aceitaria o
“estelionato eleitoral” de nomear membros do Centrão para o conselho da
Petrobras. E ainda defendeu o afastamento do ministro das Comunicações, Juscelino
Filho (União-MA), também ele um membro do Centrão, cuja maior
liderança é o próprio Arthur Lira.
O jornal O Estado de S. Paulo revelou que
Juscelino destinou recursos do Orçamento para asfaltar uma estrada que leva à
fazenda de sua família no Maranhão, além de usar um jato da FAB para ir a São
Paulo participar de eventos de cavalos de raça — incluindo a inauguração de uma
estátua em memória do saudoso Roxão, quarto de milha de um ex-sócio.
Depois disso, Lula chegou a afirmar que, se
o ministro não conseguisse “provar sua inocência”, não poderia ficar no
governo.
A conversa fatal entre Lula e Juscelino,
porém, aconteceu algumas horas depois de Lira ter disparado seus recados para o
governo. Resultado: depois de um longo papo entre o presidente e seu ministro a
portas fechadas no Palácio do Planalto, assessores palacianos anunciaram que
Juscelino ficaria no cargo, com uma única condição: que seu partido entregasse
os votos de que o governo precisa no Congresso.
O que foi dito sobre o dinheiro do
Orçamento? E sobre o tour dos cavalos? O presidente afinal se convenceu da
inocência de Juscelino? Ninguém disse nada sobre isso.
Da mesma forma, Lula, Gleisi e todo o PT se
calaram sobre o discurso de Lira. O mesmo Lula que na campanha eleitoral disse
que Bolsonaro era refém do Congresso e que Lira se comportava como “imperador
do Japão” agora está constatando que não é tão fácil assim acabar com esse
poder.
Bem mais fácil fingir que não ouviu o que
todo mundo ouviu e se concentrar no caso das joias sauditas — que, claro,
precisa ser esclarecido e só deve terminar com a punição dos responsáveis. Só
não vai levar o atual governo a encontrar seu rumo.
2 comentários:
"...uma turma de aloprados de farda..."
Descreveu muito bem: aloprados. E foi muito fácil encontrar essa "tchurma". Melhor dizendo, essa "quadrilha".
Não vivi o golpe de 64, mas se os milicos daquela época se equivaliam aos de hoje...
Parece q se equivalem. No mínimo os daquela época não souberam plantar os alicerces de uma casa q está desmoronando a olhos vistos.
Lula e Lira,dobradinha difícil de engolir.
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