Valor Econômico
Moeda americana é o “porto seguro” da
população que vive no país com inflação anualizada em torno de 140%
É difícil, para muitos, entender por que o
ultradireitista Javier Milei agrada tantos eleitores argentinos. Mas quem, de
alguma forma, já conviveu com os costumes desse povo percebe que, entre as
propostas radicais que o candidato apresenta, uma delas já faz parte do dia a
dia das pessoas. Vencedor nas prévias de agosto, Milei promete dolarizar a
economia se for eleito presidente da República.
A ideia de adotar o dólar como moeda num país tão carente de reservas cambiais pode parecer insensata aos olhos de economistas. Mas, diante de uma inflação que não dá trégua, há décadas a moeda americana tem sido não só o refúgio de quem a usa para poupar como também uma referência fácil e segura para entender e calcular o preço de muitas coisas - um imóvel, uma viagem, um curso ou uma peça de roupa. Não é de hoje, por exemplo, que alguns aluguéis são cobrados em dólar.
Ter cofre em casa é costume argentino. Mas
encontrar um esconderijo para o dinheiro é prática ainda mais comum. Não raras
vezes, a casa de quem saiu de férias é revirada por ladrões que quebram paredes
e armários em busca das cédulas. A moeda americana pode estar numa tomada falsa
ou embaixo da cama. Daí a criação do dólar “colchón”, um dos apelidos
conhecidos no mercado paralelo.
A soma dos dólares poupados pela população,
seja dentro de casa, seja em contas no exterior, soma em torno de US$ 200
bilhões, segundo o economista Aldo Abram, diretor da fundação Libertad Y
Progreso, um centro de pesquisas de políticas públicas de Buenos Aires.
O Banco Central argentino está “quebrado”,
diz Abram. O dado mais recente da instituição, do dia 23, indica que há US$ 29
bilhões em reservas brutas. Mas, segundo cálculo de especialistas, descontado o
dinheiro comprometido com pagamento de dívida, as reservas em moeda estrangeira
estão negativas em mais de US$ 5 bilhões. Milei já disse que pretende
literalmente “pôr fogo no Banco Central”.
Dólar é o “porto seguro” da população que
vive no país com inflação anualizada em torno de 140%. E o peso virou
literalmente um peso em certas ocasiões. Em transações comerciais que envolvem
grandes quantias, como a compra de um imóvel, é comum a pessoa se deslocar pela
cidade com todo o dinheiro da venda dentro de uma mala.
Talvez por isso, também, a classe média do
país goste de frequentar restaurantes e viajar. Gastar o dinheiro hoje é também
uma forma de proteger-se contra a perda do seu poder de compra no dia seguinte.
Passar pela “cueva” - nome das casas de
câmbio, ilegais - quando sobra algum dinheiro é um hábito comum, do rico e do
pobre. Muitas avós, por exemplo, entram numa “cueva” só para comprar US$ 10,
US$ 20 ou US$ 30 para dar de presente ao neto aniversariante.
É também extensa a literatura argentina que
trata dessa paixão. “Estoy Verde”, de Alejandro Bercovich, é um livro conhecido
pela forma irreverente de contar como a moeda americana se tornou um objeto de
desejo, usada até como amuleto.
O dólar era negociado ontem a 730 pesos no
paralelo e 365 pesos no câmbio oficial. Por isso, quem visita a Argentina logo
aprende a deixar o cartão de crédito no hotel. Melhor levar moeda estrangeira -
inclusive reais - e fazer a troca numa “cueva”.
Com a proximidade da eleição presidencial,
em 22 de outubro, o governo evita desvalorizar o peso para tentar frear a
pressão inflacionária. Ao mesmo tempo, porém, tem que seguir exigências do FMI,
que continua a emprestar dinheiro ao país. “A desvalorização do dólar oficial,
medidas restritivas e inflação empurram a população para o câmbio ilegal”,
afirma Abram.
No fim de semana, o ministro da Economia e
candidato a presidente, Sergio Massa, anunciou mais um pacote de medidas para
proteger a população da inflação e desvalorização da moeda local. Anunciou
bônus para aposentados e famílias mais vulneráveis e benefícios fiscais para
pequenos empreendedores. O governo também sinaliza com congelamento de preços,
medida que já se mostrou ineficaz em outras ocasiões. O congelamento fica
restrito a algumas marcas, o que faz com que tais produtos desapareçam das
gôndolas dos supermercados.
Massa desembarcou ontem em Brasília. Veio
encontrar-se com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, e agradecer o apoio brasileiro à entrada da Argentina no
bloco do Brics. Embora o governo brasileiro não declare apoio ao candidato
peronista, Massa pode tirar algum proveito político posando na foto ao lado de
Lula.
O governo argentino chega à véspera de
eleição presidencial com a imagem profundamente desgastada. Por isso, avaliam
os analistas, um “outsider” como Milei se destacou nas primárias. Abram nota
que o candidato apresenta propostas que agradam o mercado por um lado.
Por outro, no entanto, é difícil,
desmembrar um discurso pró-mercado das ideias perturbadoras que Milei revela em
relação a muitos outros temas.
Milei, que é economista, ganhou fama em
debates sobre política na TV e simpatiza com Donald Trump e Jair Bolsonaro,
acha, por exemplo, que o aquecimento global “é uma mentira”. É, ainda,
preocupante ouvir o candidato a presidente de um país onde a taxa de pobreza
ultrapassa 40% dizer que “Estados que permitem o livre porte de armas têm menos
crimes” e, ainda, defender a prática legalizada da venda de órgãos.
Um comentário:
As ideias de Javier Milei são as de um ultra-libertário e, por serem muito disruptivas, assustam muita gente mesmo ; a mim, certas falas dele me assustam também.
Mas até agora nada vi que permita identificar Javier Milei ideologicamente como um fundamentalista de direita. A permissividade sobre armas, que do que vi dele é o que mais poderia lhe dar um carimbo de ultra-direita, nem isso cabe para carimbar :: se permissividade com armas por si só fosse carimbo de fundamentalista de direita, toda a política e o eleitorado norte-americano seriam isso ; e não são, muito pelo contrário!
Poucos de nós brasileiros, talvez ninguem, conhece o candidato argentino suficientemente para localizá-lo no espectro ideológico. Mais exposto ao escrutínio, possa ser que Javier Milei se revele o fundamentalista que dizem ser ; ou que a experiência no poder, se ele ganhar, o demova de várias das ideias libertárias radicais que ele hoje defende.
DOLARIZAÇÃO
▪Quanto à proposta de dolarização da economia argentina, isto só daria certo, se for para dolarização definitiva, se a economia da Argentina tivesse uma produtividade mais próxima daquela da economia dos Estados Unidos, o que não é, ou se os dois países estivessem dispostos a estabelecerem uma União Monetária, o que praticamente exigiria uma abertura aduaneira total e muito subsídio dos Estados Unidos para uma aproximação das duas economias.
Mas a Argentina, na situação de sua economia atual, está precisando de financiamento, que não vai chegar de fora porque a Argentina não tem como dar garantias e terá que ir se segurando por ora com a boa vontade do FMI, que os tem socorrido financeiramente na falta de outro emprestador ; e eles aceitam o socorro, mas, como acontece muito, xingam o FMI.
Como nos próximos anos ninguém de fora vai ajudar a Argentina, tal a sua situação de quase falência, e não há nenhuma disposição de suas forças políticas em bancar a austeridade necessária para começar a ter chance de vencer a crise, sobra buscar dentro da própria Argentina o dinheiro de que precisam
Financiadores suficientes com poupança aplicada no mercado interno a Argentina não deve ter, e se tiver é bem impossivel que aceitem acreditar em qualquer projeto, à esquerda, à direita ou à parte, sob a forma de alguma proposta alternativa.
Como a Argentina nào pode resolver seus problemas sem dinheiro e dinheiro não tem, nem de financiadores externos nem internos dispostos ao risco, sobra uma última cartada antes de ser obrigada, querendo ou não, a adotar um plano de sacrifício absoluto. A última opção antes de ser obrigada a assumir um plano de austeridade máxima é a Argentina conseguir desovar as milhões de pequenas poupanças em dólares, que estão escondidas em fossas, gretas, buracos e outros lugares assim, e trazer esses dólares para movimentar a economia, em uma soma de medidas que deverá, além de uma dolarização inicial e temporária, ter também bastante corte de gastos e aumento de impostos, além de mais ajuda do colaborativo e mesmo assim tão xingado FMI.
Mas a dolarização, se vier, penso que será apenas para tentar fazer os pequenos pacotes de dólares que estão escondidos serem trazidos para a economia.
Se a política econômica de Javier Milei conseguir por um tempo que o crescimento leve a ganho da moeda contra a inflação que seja próximo do ganho em reservar valor usando dólares, há uma chance desse dinheiro ser tirado dos esconderijos e vir para o mercado.
Mas eu duvido que a dolarização, se vier, dure mais que dois mandatos. Depois, dando certo ou dando errado, a dolarização terá esgotado o objetivo de sua adoção e uma nova moeda argentina será retomada.
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