segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Morre José Murilo de Carvalho, um dos maiores historiadores e intelectuais brasileiros

O Globo

O imortal de Academia Brasileira de Letras e autor de 'Os bestializados' tinha 83 anos

Morreu na madrugada deste domingo o Acadêmico José Murilo de Carvalho, aos 83 anos. Ele estava internado no Hospital Samaritano, em Botafogo, com Covid-19. O velório será na segunda-feira, a partir das 9h, na Academia Brasileira de Letras. E o enterro, às 13h, no Mausoléu da ABL no Cemitério São João Batista.

Considerado um dos maiores historiadores e intelectuais brasileiros, José Murilo era mineiro, bacharel em sociologia e política pela UFMG, mestre em ciência política pela Universidade de Stanford, na California, onde defendeu tese sobre o Império Brasileiro. Foi professor e pesquisador visitante nas universidades de Oxford, Leiden, Stanford, Irvine, Londres, Notre Dame, no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, e na Fundação Ortega y Gasset em Madrid.

José Murilo foi professor emérito da UFRJ e pesquisador emérito do CNPq. Eleito para a ABL em 2004, ocupava a cadeira nº 5. Escreveu 19 livros, entre eles “A Formação das almas”, “A cidadania no Brasil”, e “Os bestializados”. Fazia parte também da Academia Brasileira de Ciências.

Mineiro de Piedade do Rio Grande, José Murilo nasceu em 1939 em uma pequena fazenda de gado leiteiro, sem luz elétrica nem água encanada, e lá viveu até os 10 anos de idade, quando partiu com o irmão mais velho para o Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont (MG).

Bomba em matemática

O regime de internato era duro, mas após cinco anos estudando com os frades franciscanos, ele foi para outro seminário, em Daltro Filho (RS), onde cursaria dois anos de Filosofia. José Murilo queria seguir a carreira de agronomia, mas, ciente de suas limitações nas exatas e biológicas, optou pela Economia. Levou bomba em matemática e acabou no curso de Sociologia Política, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - para o qual passou em segundo lugar.

Ainda estudante, publicou seu primeiro artigo, sobre o poder local em Barbacena (MG). A partir daí, viria uma série de artigos, capítulos e livros de repercussão nacional. Na Universidade Stanford, onde concluiu o mestrado (1969) e o doutorado (1975) em ciência política, José Murilo teve contato com nomes de peso das ciências sociais, como Gabriel Almond, Heinz Eulau, Sidney Verba.

A tese de doutorado, em que ele analisou o perfil das elites políticas brasileiras no século 19 e sua relação com os partidos imperiais, deu origem a uma consistente obra, publicada em dois volumes: "A construção da ordem: a elite política imperial" e "Teatro de sombras: a política imperial".

Um dos grandes pensadores sobre o seu país, José Murilo de Carvalho Dissecou em suas obras o Brasil do Império e da Primeira República. Com elas, ganhou prêmios importantes, como o de melhor livro de 1988 da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs) – por "Os bestializados" – e por duas vezes o Jabuti – em 1991, com "A formação das almas: o imaginário da República no Brasil" e, em 2008, com "Dom Pedro II: ser ou não ser".

A partir da investigação inicial sobre o Império José Murilo de Carvalho expandiu sua investigação para as relações cidadãs no Brasil, o que resultou, entre inúmeras publicações relevantes, em "A construção da cidadania no Brasil", publicado pela Civilização Brasileira e que conquistou o prêmio Casa de las Americas em 2004. Tendo em vista os 20 anos do prêmio para o historiador, o Grupo Editorial Record preparava uma edição comemorativa com nova capa que será publicada ainda este ano.

Referência na Universidade

José Murilo ajudou a criar a pós-graduação em Ciência Política na UFMG e o doutorado na mesma área no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e colaborou na pós-graduação em história na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Orientou 12 monografias, 20 dissertações de mestrado e 19 teses de doutorado.

Em 2003, o historiador foi eleito membro da Academia Brasileira de Ciências e, no ano seguinte, da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira deixada pela escritora Rachel de Queiroz (1910-2003). Ele recebeu homenagens importantes, como a Medalha de Oficial e Comendador da Ordem de Rio Branco (1989), a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1998) e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto (2008).

Em 2019, em entrevista ao GLOBO conduzida por Zuenir Ventura, acerca do livro “Três vezes Brasil” (uma introdução ao conjunto da obra de José Murilo de Carvalho, Alberto da Costa e Silva, Evaldo Cabral de Mello, três dos maiores historiadores brasileiros), o mineiro expressou seu desencanto com o país.

— Minha visão é muito pessimista. Haverá saída para a situação em que vivemos? Eu acho que é muito difícil com uma marginalidade tão grande, com tanta exclusão social, milhões de pessoas desempregadas, subempregadas ou não empregáveis por falta de educação. Não vejo como incorporar ao mercado com um crescimento de 1% ou 2% ao ano.

Na mesma entrevista, José Murilo também não se mostrava otimista com o futuro do seu próprio ofício:

— Hoje já não se fala mais da História como mestra da vida. A própria ideia de que a História deve descobrir a verdade caducou.

'Uma perda não apenas para a ABL, mas para a cultura brasileira'

Presidente da Academia Brasileira de Letras, o jornalista Merval Pereira lamentou a morte do acadêmico:

— José Murilo de Carvalho era dos nossos maiores historiadores, que explicou nosso passado desde o Império e, a partir desse conhecimento, analisava a política brasileira recente com requintes históricos que ajudavam a antever o futuro, do qual se desiludiu nos últimos anos. É uma perda não apenas para a ABL, onde tinha sob seus cuidados nossos arquivos, mas para a cultura brasileira.

No Twitter, o presidente da Biblioteca Nacional e colega de Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, lamentou a morte do ocupante da cadeira número 5.

— José Murilo de Carvalho, um dos grandes intérpretes do Brasil, renovou a historiografia a partir da segunda metade do século XX, com livros que nasceram clássicos como "A formação das almas", "Os bestializados", "A construção da ordem" e outros como "Forças armadas e a política", tão atual — diz. — Aprofundando a história política do Século XIX o José Murilo compreendeu a formação do Século XX, a Proclamação da República e todos os defeitos do que ainda resta e dos mecanismos para republicanizar a República, para lhe emprestar um conteúdo mais cidadão. Zé Murilo foi uma das pessoas mais probas, honestas e corretas que eu jamais conheci em toda a minha vida.

No Instagram, a historiadora Lilia Schwarcz escreveu sobre a dimensão da perda de José Murilo de Carvalho: "A eternidade há de cuidar bem de quem tanto cuidou da nossa memória cívica, crítica e cidadã. Ele continuará presente por meio da vasta obra que deixa; um modelo de como a história cuida de lembrar do que procuramos esquecer. Zé Murilo nunca nos deixa esquecer. "

 

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