Valor Econômico
A rigidez orçamentária é o verdadeiro
calcanhar de Aquiles do regime fiscal da União
Tem sido comum a demanda por corte de gastos
do governo federal. No mercado financeiro, alega-se que a isso é necessário,
dado que o novo arcabouço fiscal depende excessivamente da elevação de receitas
para cumprir metas de resultado primário e de endividamento. Gente com
experiência no governo federal diz o mesmo. Outros argumentam que a reforma
administrativa reduzirá despesas da União, o que está longe de ser totalmente
verdadeiro.
Teoricamente, o clamor está correto. Vários estudos demonstram que o melhor ajuste fiscal é aquele realizado via despesa, pois pode se concentrar em áreas menos essenciais e poupar dos cortes os investimentos e outros programas fundamentais. A opção pela receita eleva a participação do governo na economia e acarreta alocação menos eficientes dos recursos, o que afeta negativamente a produtividade e o potencial de crescimento.
Sucede que no campo das finanças públicas não
somos um país normal. A partir da Constituição de 1988, construímos uma rigidez
orçamentária (gastos obrigatórios) sem paralelo no planeta. Criamos ou
ampliamos a vinculação de recursos para educação, saúde, assistência social,
ciência e tecnologia e outras áreas. Instituímos um generoso sistema
previdenciário - que hoje consome metade das despesas primárias da União, uma
participação sem correspondência no mundo -, elevamos o custo da folha pessoal
e estabelecemos programas sociais justificáveis, mas sem avaliar sua
viabilidade orçamentária.
A vinculação de recursos a certas atividades,
apoiada por grande maioria da sociedade, é um dos absurdos das finanças
públicas do Brasil. Trata-se de uma forma primitiva de definir prioridades, que
condiciona os parlamentos para sempre. Será que daqui a algumas décadas, com
muito menos jovens em idade escolar em virtude da queda da taxa de natalidade,
a educação necessitará de tantos recursos quanto hoje ou haverá outras
prioridades? O grande apoio da sociedade a essa regra reflete, na verdade, uma
desconfiança na capacidade do Congresso de apoiar a destinação de recursos a
essa área. Se admitirmos que o Congresso não sabe exercer sua função
primordial, qual seja a de aprovar anualmente o Orçamento, que é a peça
legislativa mais relevante, como acreditar que possa bem exercer outras
funções?
A União é obrigada a destinar à educação 18%
da arrecadação líquida de seus impostos. O percentual dos Estados e municípios
sobe para 25%. Cometem crime de responsabilidade fiscal os governantes que não
obedecerem a tal determinação legal. Poderão parar na cadeia. Em municípios
onde a emigração e a queda da fertilidade têm gerado escolas com poucas
crianças, não há como gastar toda a verba em atividades normais associadas à
educação. Os prefeitos são levados a inventar gastos como pintar várias vezes
as escolas ou criar programas que gerem novas despesas. No campo da educação,
não faz sentido aplicar no Brasil a moderna técnica de gestão orçamentária, a
spending review (revisão periódica de gastos). Se for possível reduzir gastos,
a folga terá que ser mandatoriamente despendida, pois é preciso cumprir a regra
da vinculação.
No exercício de 2022, os itens obrigatórios
representaram 91% dos gastos primários do governo federal, que excluem os
encargos financeiros. Agora, a situação se agravou, pois se restabeleceu a
política de reajuste do salário mínimo acima da inflação, o que terá forte
impacto na Previdência e nos benefícios de prestação continuada. Pior, a
política se tornou permanente, pois se eliminou o prazo de duração quando de
sua oficialização no governo de Dilma. Sua renovação periódica permitia a
discussão sobre a conveniência de continuá-la. Isso não acontecerá doravante.
Finalmente, o novo arcabouço fiscal criou um piso para o investimento, o qual,
segundo interpretação de muitos, pode ser contingenciado. Mesmo que assim o
seja, a maior parte do piso será ocupada pelo Novo PAC, que, segundo o
presidente Lula, não estará sujeito a contingenciamento.
Diante de tudo isso, o Orçamento de 2024,
recentemente enviado ao Congresso, reservará apenas R$ 55 bilhões para gastos
discricionários, ou seja, aqueles sob controle do governo. Desse modo, no
próximo exercício, os desembolsos obrigatórios corresponderão a inacreditáveis
98% dos gastos primários. Se considerarmos os encargos financeiros da dívida
pública, que são na prática igualmente obrigatórios, a rigidez atingirá 99% das
despesas. Claro, o governo pode cortar gastos como os relativos ao café nas
repartições públicas e a viagens de servidores em tarefas de fiscalização ou
para participar de reuniões fora de Brasília. Pode diminuir pousos e decolagens
de aviões da Força Aérea, o consumo de diesel dos navios da Marinha e os
exercícios realizados pelo Exército, entre outros. Nada disso será
relativamente importante para reduzir despesas.
A inaceitável e insustentável rigidez
orçamentária foi criada com amplo apoio do Congresso ao longo do tempo. É coisa
rara encontrar parlamentares que conheçam ou liguem o mínimo para o conceito
elementar da restrição orçamentária, que significa reconhecer um limite para
ampliar o gasto, dado pela arrecadação tributária e pela capacidade de
endividamento público. Agora mesmo, está em curso um novo trem da alegria
baseado numa emenda constitucional que vai integrar, aos quadros da União,
funcionários dos antigos territórios de Rondônia, Amapá e Roraima.
A rigidez orçamentária explica a quase
impossibilidade de cortar gastos, bem como a dependência da arrecadação para
cumprir metas de superávit primário e a dificuldade de estabilizar e depois de
reduzir a relação entre a dívida pública e o PIB. A rigidez é o verdadeiro
calcanhar de Aquiles do regime fiscal da União. Sem reduzi-la drasticamente, o
Brasil tem um encontro marcado com uma grave crise da dívida pública. Não há,
todavia, qualquer preocupação com esse risco, nem no governo nem no mercado
financeiro, que nesse campo tem-se guiado, ao contrário, por simples
complacência.
*Maílson da Nóbrega foi ministro da Fazenda. É sócio da Tendências Consultoria.
2 comentários:
Muito interessante e lógico este artigo.
Nobrega,sobrenome nobre e brega ao mesmo tempo,rs.
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