Folha de S. Paulo
Entre a convicção do grupo e a posição
oficial do presidente, desta vez o petista de fé parece preferir manter a sua
crença
Diz-se frequentemente que o grosso da
esquerda brasileira tende a acompanhar diligentemente a posição de Lula sobre
qualquer questão. Não é que a esquerda seja monolítica, ao contrário. Há
verdade no ditado segundo o qual a esquerda se divide por qualquer razão –
valores, ênfases, interpretações – enquanto a direita se une por interesses.
O fato, porém, é que a percepção da importância e do carisma de Lula, além da constatação de que sem Lula a esquerda não teria a mínima chance eleitoral de governar o país, parece levar a militância a um alinhamento automático com o seu maior líder. Mesmo em questões penosas, como quando Lula coloca interesses políticos pragmáticos acima da pauta identitária.
A sensação é que para os militantes, graúdos
e miúdos, vale para Lula o que se dizia de Roma antiga: "Roma locuta,
causa finita". Quer dizer, havia um considerável espaço para as querelas
jurídicas e as divergências políticas, mas só até que uma autoridade, um
tribunal, uma instituição de Roma se pronunciasse a respeito. De maneira
similar, "Lula falou, a questão está resolvida", pelo menos para a
militância petista.
Talvez essa impressão não seja tão verdadeira
assim. No caso do conflito entre Hamas, Israel e Palestina, a
posição de Lula e a da militância petista seguem linhas claramente paralelas.
Sim, o presidente da EBC foi demitido, segundo se alega, por conta de seus
posts inflamados contra Israel e o sionismo. Mas a presidente do PT disse o
mesmo, e pior, para condenar o "genocídio contra a população de Gaza"
executado pelo Estado de Israel, sem a menor consideração pela posição
enunciada pelo presidente da República nem com as reações do governo de Israel
à provocação.
Lula já declarou duas vezes que a matança e o
sequestro de civis israelenses pelo Hamas foram um ato de terrorismo e tem
recusado a exigência dos seus seguidores de que declare que Israel faz
"terrorismo de Estado". Nem têm usado as palavras "apartheid"
e "genocídio" associadas a Israel, armas fundamentais da guerra moral
em que a esquerda está engajada nas plataformas de mídias digitais.
Petistas influentes, por outro lado, não
hesitam: "terrorismo" é palavra proibida quando aplicada ao Hamas e
designação essencial para o Estado de Israel. Como determinou normativamente
uma dessas figuras essa semana, nenhuma pessoa de esquerda deveria usar o
conceito de terrorismo para grupos e líderes que se insurgem contra a dominação
do sistema imperialista. Para o império, por outro lado, decerto que sim. E,
"com todo o respeito", discorda-se explicitamente de Lula, pois não
se considera razoável chamar de terrorismo o que faz o Hamas "sem aplicar
o mesmo conceito ou outro mais grave ao Estado colonial de Israel".
Não se trata aqui de decidir quem está certo
nessa controvérsia - embora essa observação não tenha a menor chance de ser
notada nesses tempos em que o julgamento precede a leitura –, mas de entender
por que a posição de Lula e a dos militantes petistas estão desalinhadas dessa
vez e, o que é mais surpreendente, a posição de Lula é que é minoritária nas
trincheiras da esquerda mais ativa e mais engajada nos ambientes digitais.
Não e que me desagrade que Lula governe o
Brasil e não o PT, ao contrário. É que Lula já se pronunciou sobre a questão em
disputa e isto não mudou em nada a posição do partido ou da militância, e isso
não é comum.
É possível que a hipótese do alinhamento
automático entre líder e seguidores não dê conta de um outro fenômeno típico do
seguimento em grupos muito coesos em convicções, valores e atitudes:
eventualmente, prefere-se os dogmas do grupo ao vínculo intelectual ao líder. O
que significaria que, no fundo, a posição dos petistas sobre a questão
palestina é tão arraigada, tão identificada aos valores do grupo e tão
automaticamente compartilhada que acompanhar Lula produziria uma dissonância
cognitiva tão intensa que a maioria prefere evitar.
Não se abre facilmente mão de toda uma
simbologia da luta do oprimido contra o opressor e de uma inclinação automática
a torcer pelo azarão. Por anos e anos o grupo se habitou a falar e ouvir sobre
a desumanidade com que são tratados os palestinos ou a injustiça dos
assentamentos israelenses. Isso dificulta, quando não impede, qualquer
alternativa de compreensão da realidade, de modo que até o terrorismo do Hamas
desaparece da equação e da percepção social. No fundo, é isso: entre a
convicção do grupo e a posição oficial de Lula, desta vez o petista de fé
parece preferir majoritariamente manter a sua crença. "Com todo o
respeito".
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada
Um comentário:
Lula está certo,a militância está errada.
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