Folha de S. Paulo
A manifestação promovida por Bolsonaro deve
ser definida como um ato de chantagem
Mutualismo, em biologia, é a relação
simbiótica entre diferentes espécies na qual cada uma delas extrai benefícios.
Na Paulista, domingo passado, Bolsonaro e seus aliados –Tarcísio de Freitas,
Romeu Zema e Ronaldo Caiado, potenciais candidatos presidenciais– exercitaram o
mutualismo. Bolsonaro conseguiu exibir-se como líder da direita. Os aliados sem
princípios marcaram pontos junto ao eleitorado do ex-presidente.
A manifestação deve ser definida como um ato de chantagem. A eficiente demonstração de força popular não teve nenhum outro objetivo político senão pressionar o Congresso e o Judiciário a aceitarem uma barganha indecente. Bolsonaro ofereceu "pacificação" e "conciliação" em troca da impunidade para ele e seu cortejo, acrescida pelo perdão aos soldadinhos idiotas do 8 de janeiro.
Malafaia, o mestre de cerimônia, cumpriu um
papel ensaiado, falando duro para acentuar o contraste com a fala mansa de
Bolsonaro. Talvez imagine saltar de vez da esfera religiosa à política, como
sucessor do golpista inelegível. Michelle, a pregadora, rompeu explicitamente a
barreira que separa a religião da política, invocando o nome de Deus para obter
ganhos bem terrenos. Os evangélicos já têm uma profeta charlatã. Tarcísio, Zema
e Caiado, além do secundário Ricardo Nunes, limitaram-se a posar para as câmeras,
expondo a matéria de que são feitos.
Eles são feitos, exclusivamente, de
oportunismo eleitoral. Quando perfilam ao lado de Bolsonaro, evidenciam seu
desprezo pela democracia. De que adianta jurarem amor eterno à pluralidade
política e ao sistema eleitoral se emprestam um guarda-chuva ao protagonista de
uma tentativa de golpe de Estado?
Um estudo conduzido por cientistas de Yale
provou que uma relação mutualista entre vírus e bactérias pode derivar de uma
relação originalmente parasitária. Eles mostraram que o comportamento das
espécies apresenta vasta elasticidade, o que pode incluir rápidas alternâncias
entre parasitismo e mutualismo. A Paulista indica que a conclusão vale, também,
no universo da política.
Antes, os três governadores e o prefeito
parasitavam Bolsonaro, mantendo prudente distância enquanto recolhiam votos em
sua base eleitoral. Hoje, no cenário em que o golpista encontra-se sitiado pelo
avanço das investigações, estabeleceu-se uma relação de mútuo benefício. Em
troca de votos potenciais, os aliados tornaram-se fiadores do subversivo que
almejava lançar as Forças
Armadas na aventura da virada de mesa. A coluna vertebral deles
nunca mais ficará ereta.
Lideranças que colocam o interesse público à
frente do cálculo de vantagens circunstanciais são pérolas raras. Daí, a
importância de instituições sólidas e regras bem desenhadas. No caso da
Paulista, a devassidão moral dos fiadores de Bolsonaro não explica tudo. Atrás
da relação de mutualismo que estabeleceram encontra-se a prerrogativa da Justiça
Eleitoral de, anulando a vontade dos eleitores, decidir quem
tem o direito de disputar eleições.
Democracias menos imperfeitas não cassam
direitos políticos quase em nenhum caso. Por aqui, declara-se inelegibilidade a
rodo. Lula foi vítima da supremacia dos juízes eleitores. Agora, é a vez de
Bolsonaro. O que conseguiram é transformá-lo em Grande Eleitor, poupando-o do
embate político na arena eleitoral. Ao mesmo tempo, libertaram as lideranças da
direita da necessidade de marcar suas diferenças com o chefe golpista.
Sem a inelegibilidade, os potenciais
candidatos da direita precisariam confrontar a pré-candidatura de Bolsonaro
para viabilizar suas pretensões presidenciais. Mesmo a contragosto, teriam que
falar sobre a trama cívico-militar bolsonarista contra o sistema eleitoral. Mas
os juízes soberanos evitaram uma cisão capaz de isolar a facção subversiva. A
missa profana na Paulista foi uma oferenda do TSE ao inimigo da democracia.
Um comentário:
Pode ser.
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