CartaCapital
À frente do TSE, o ministro cumpriu a missão
constitucional exigida pelo cargo e pelas circunstâncias
Vamos conversar sobre o bolsonarismo que
pretende esconder suas desbotadas e remendadas vestimentas ostentando fraque e
cartola. Assim ajambrado, o bozismo esfarrapado desfilou suas
deselegâncias nas páginas da Folha de S.Paulo. O desfile foi comandado por um
estridente rufar dos tambores midiáticos.
A matéria da Folha busca apontar
impropriedades jurídicas cometidas pelo ministro Alexandre de
Moraes no Tribunal Superior Eleitoral. O ministro empenhou-se
em elucidar os riscos da divulgação de fake news e de outros prodígios
antidemocráticos. As investidas contra o procedimento de Moraes rescendem
o fedor autoritário que impregnava as matérias e editoriais no período que
antecedeu o golpe de 1964. Os contorcionismos midiáticos prosseguiram em suas
tropelias nos tempos duros da “ditabranda”. Assim o jornal batizou os 21 anos
da ditadura cívico-militar.
O “Espírito da Ditabranda” ainda inspira o acarpetado gabinete social construído nos espaços siderais ocupados pelos Bonitos, Ricos e Bondosos. Esses senhores trafegam nas alturas do Dinheiro e do Poder – seria melhor dizer nos excelsos caminhos dos Poderes do Dinheiro. Nos baixios da planície sobrevivem os Brutti, Sporchi e Cattivi (Feios,Sujos e Malvados), personagens inesquecíveis do filme de Ettore Scola.
Prefiro entender as estrepolias midiáticas
como manifestações das muitas obsessões oligárquicas que assolam os senhores de
Pindorama. Nas sinapses dos patrícios da pátria sobrevive a hierarquia
“natural” que organiza a sociedade brasileira desde os tempos da escravidão.
Diante das espicaçadas pseudojurídicas da matéria da Folha na busca por
incriminar o ministro, lembrei-me das estocadas de um economista da “Turma dos
Ricos e Bonitos” que sentou a pua na turma do andar de baixo: “O
corporativismo, a cultura do direito conquistado, a demagogia, o populismo e a
ditadura do politicamente correto transformaram o Brasil na república dos
coitadinhos, onde os que são considerados vulneráveis julgam ser detentores de
privilégios a ponto de desafiarem as autoridades constituídas para conquistarem
suas metas”.
O “Espírito da Ditabranda” ainda inspira o
acarpetado gabinete social
Os processos sociais e econômicos que assolam
o mundo contemporâneo são cruéis em suas contradições. Adulam o sucesso
individual e, no mesmo movimento, exercem o controle dos cidadãos no propósito
de aniquilar os resíduos de sua capacidade crítica. Na era do ciberespaço, o
domínio dos corações e das mentes é exercido com os métodos desenvolvidos nos
laboratórios midiático-repetitivos encarregados de remover as sobras de razão
que os indivíduos imaginam preservar. A estupidez socializada circula nos espaços
ocupados por youtubers, influencers et caterva.
Para não cometer deslizes no campo do
direito, entrego a palavra à sabedoria jurídica da professora Élida Graziane
Pinto.
Recentemente, as eleições de 2022 voltaram ao
debate nacional em dois momentos distintos, mas interligados, a despeito de a
maior parte dos analistas ter rapidamente se esquecido do primeiro e mais
significativo deles.
Nos episódios de inconstitucionalidade da
liberação de gastos bilionários em benefícios concedidos extraordinariamente em
ano eleitoral e de combate à desinformação decorrente de notícias falsas
direcionadas a desequilibrar as eleições, as atuações do Supremo Tribunal
Federal e do Tribunal Superior Eleitoral estiveram correlacionadas. Quem não lê
em conjunto ambos os esforços de controle, enviesadamente pode ser levado a
crer na controversa notícia de que teria havido uma suposta atuação “fora do
rito”, na presidência do TSE, do ministro Alexandre de Moraes, em relação à
investigação de notícias falsas e combate à desinformação.
Vale lembrar que, em 1º de agosto deste ano, o
STF julgou a Emenda 123, de 14 de julho de 2022, nos autos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 7212. A chamada “Emenda Kamikaze” havia autorizado o
então presidente da República, Jair Bolsonaro, candidato incumbente à
reeleição, a abrir cerca de 40 bilhões de reais em créditos extraordinários às
vésperas das eleições nacionais passadas.
A pretexto de um controverso estado de
emergência decorrente dos efeitos da Guerra na Ucrânia no mercado doméstico de
combustíveis, foram repassados auxílios a caminhoneiros e taxistas, bem como
houve ampliação provisória do valor do Auxílio Brasil, transferência de renda
aos vulneráveis análoga ao Bolsa Família, e do Auxílio Gás, entre outros
benefícios a indivíduos e repasses a entes federativos.
De forma tão abrupta, quanto irrefreada, a
Emenda 123/2022 rompeu diversas restrições fiscais e eleitorais, em volume e
ousadia inéditos na história republicana brasileira. Todavia, a ADI 7212,
proposta pelo Partido Novo, somente veio a ser julgada procedente pelo STF dois
anos depois. Ao decidir tardiamente, a Suprema Corte brasileira teve de refutar
a tese de perda de objeto da ação em face de uma norma, cujos efeitos já tinham
expirado no ano de 2022. Em busca de um antídoto contra o risco de reiteração do
abuso de emenda constitucional para tentar influenciar futuros processos
eleitorais, o STF formalmente declarou que a Emenda 123 violou o princípio da
igualdade de oportunidades entre os candidatos, ao ter ampliado a concessão de
benefícios sociais em ano de eleições. O próprio apelido de emenda “Kamikaze”
dava a dimensão profunda do risco de quebra da paridade eleitoral com o uso
massivo de recursos públicos.
Os que mais se beneficiaram da inconstitucional
distribuição de cerca de 40 bilhões de reais às vésperas do pleito de 2022
foram os parlamentares federais que se reelegeram sem maior dificuldade, o que
fez com que a taxa de renovação, cerca de 40%, na Câmara dos Deputados e no
Senado, fosse uma das menores do período pós-1988.
Em igual medida, o estreitamento significativo
da diferença entre os candidatos no segundo turno em face do primeiro turno
para o pleito executivo sugere um considerável impacto da emenda, ainda que com
efeitos retardados no tempo. Tivesse sido promulgada um ou dois meses antes,
provavelmente a repercussão eleitoral dos benefícios que autorizou poderia ter
sido decisiva para alterar o resultado do pleito à Presidência da República.
Eis o contexto em que o posterior
reconhecimento da inconstitucionalidade da emenda pelo STF deveria trazer uma
reflexão contraposta à notícia que alguns veículos de imprensa têm veiculado
sobre suposta atuação “fora do rito” pelo então presidente do TSE, Alexandre de
Moraes. Como poderia ele ter sido tão ágil no controle das notícias falsas que
também tentaram capturar o pleito eleitoral passado e não ter atuado pronta e
amplamente no caso da distribuição bilionária de benefícios prevista na Emenda
Kamikaze?
Ora, o que explica a diferença entre uma e
outra circunstância é exatamente a segura atuação do ministro nos limites da
sua atribuição normativa. Enquanto a Emenda 123 vigeu e o STF não a havia
declarado inconstitucional, o TSE nada poderia impugnar acerca do risco de
abuso de poder que ela ensejou nas eleições de 2022. Havia um permissivo
constitucional, ainda que falseado, contra o qual a Justiça Eleitoral não
poderia se insurgir, sob pena de se sobrepor à competência do STF.
A Justiça Eleitoral exerce funções
administrativo-regulatórias em escala maior do que sua atribuição jurisdicional
Distinta, porém, era a atribuição da Corte
Eleitoral no controle da difusão espraiada de notícias falsas e no combate à
desinformação. Aqui a atuação do TSE em defesa da higidez do escrutínio popular
devia ser feita de ofício, celeremente, no âmbito do poder de polícia
administrativa de que a Justiça Eleitoral dispõe.
Não se pode confundir competências e difundir
suposições falsas sobre ofensa ao devido processo legal, onde, a bem da
verdade, o que existe é uma peculiar conformação institucional da mais alta
Corte Eleitoral brasileira. O TSE é instância híbrida, onde têm assento
ministros do STF, sendo um deles o seu presidente. De certo modo, a designação
formal como “tribunal” conduz a equívocos, porque, muito embora esteja
vinculada ao Poder Judiciário, a Justiça Eleitoral exerce funções
administrativo-regulatórias, em escala maior do que sua atribuição propriamente
jurisdicional.
Diante das eleições nacionais de 2022, a
dúplice função administrativo-regulatória e jurisdicional do TSE e dos seus
ministros foi testada à exaustão. Em cada ato ou omissão juridicamente
relevante a Corte Eleitoral atuou, consciente do limite da sua atribuição, sem
se sobrepor ao STF.
Não foi fácil a missão constitucional
desempenhada pelo ministro Alexandre de Moraes nas últimas eleições. Quem quer
que lhe observe retroativamente a conduta tanto no TSE quanto no STF, ao longo
de 2022, somente o fará com equidistância se contrastar o modo como atuou (se
se preferir, “o rito” que lhe guiou) em suas respectivas competências na ADI
7212 e na tentativa de contenção dos vários abusos tendentes a corroer a
higidez do processo eleitoral passado. •
*Professora da Fundação Getulio Vargas e
procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital,
em 28 de agosto de 2024.
3 comentários:
Por mais que se pinte de dourado um ditador será sempre um ditador e acabará caindo e Morais está com a sua batata Assando por mais que vocês tentem passar pano
É constrangedor como a esquerda desafia a inteligência alheia em nome de uma ideologia cega e ultrapassada.
Como acredita ter o “monopólio das virtudes” pode seguir as próprias convicções pois ninguém tem mais nada a acrescentar…. Uma maneira bem peculiar e especial de ser democrático….
E a polarização foi trazida do espaço pelo foguete do Musk
Como a Dra. Élida mostra, o ministro Moraes não cometeu qualquer ilegalidade e nem extrapolou suas funções, pois era simultaneamente ministro do STF e presidente do TSE, e nas 2 instituições ele atuou integralmente dentro dos limites da Lei e das necessidades urgentes requeridas em cada ação tomada por ele. As ameaças e os crimes da campanha bolsonarista precisavam (e felizmente foram) enfrentadas com rapidez e legalidade exemplares. Parabéns aos autores deste excelente artigo, e ao blog por divulgar o trabalho deles!
É constrangedor ver bolsonaristas CRIMINOSOS criticando e até ameaçando a ação de agentes da Justiça contra seus malfeitos!
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