segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Miguel de Almeida - Chame o ladrão

O Globo

Três momentos simultâneos e nada alegres na vida brasileira:

1 — Hoje a Universidade de São Paulo realiza cerimônia de diplomação de 15 alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) mortos durante a ditadura militar. Eram jovens com menos de 25 anos, assassinados pelas forças do governo. Serão oferecidos diplomas honorários de graduação.

2 — Como se fossem anúncios, os outdoors digitais paulistanos avisam (sem modéstia): a cada 16 minutos uma moto é roubada ou furtada. É uma produtividade baixa quando se trata de outro objeto de desejo: na Avenida Paulista, em números de 2022, cerca de 5,3 mil celulares foram abduzidos. Na cidade, a cada três minutos (!) um aparelho é levado. No elevador do meu prédio, o síndico cola um aviso: “Não espere o Uber na calçada com o celular à mostra. Ciclistas ou motoqueiros levam seu aparelho!”. É a rotina do medo.

3 — Um garoto de 14 anos (!) cometeu suicídio depois de ser reiteradamente vítima de bullying em um colégio de elite paulistano. Ele era negro, bolsista e sofria assédio homofóbico. Como a escola não o protegeu? O que os pais ensinam a seus filhos em casa?

Enquanto não existirem políticas públicas de segurança, à direita ou à esquerda, como indicam os altos índices de criminalidade, sobram lamentos e arremedos entre a população. Os governos e os despreparados candidatos a prefeito não se mobilizam, ao contrário do crime organizado. Com números na casa de milhares de milhões, demonstram ter gestão de resultados melhor que a maioria dos estados brasileiros. 

Ao que tudo indica, o PCC investe no poderoso mercado imobiliário de São Paulo. Já se fala numa espécie de Little Italy, o antigo bairro da máfia em Nova York. Quem surge no papel é o Tatuapé, região onde sobem edifícios ao preço de duplex de Manhattan, com vários apartamentos comprados pelo dinheiro do tráfico, segundo investigações do Ministério Público. Até pouco tempo atrás, era o distrito com maior número de BMWs da cidade. Em linha com a filosofia de boa parte dos brasileiros, imóveis são encarados como ativos protegidos da inflação e vistos como investimento seguro também pelos meliantes.

Outras investigações, embora toda a cidade já comentasse, enfim chegaram às concessionárias de ônibus urbanos. Outra diversificação patrimonial do crime. Assim como postos de gasolina, com combustível adulterado, porque, afinal, ninguém é de ferro. No caso, se trata de investimento na cadeia vertical de mobilidade, porque também algumas lojas de automóveis estão sob suspeita — de preferência, de carros importados; investir em 1.0 nacional não dá camisa, só prejuízo, a desvalorização é imediata, assim como o nível de ruídos dos veículos. Pelo andar da carruagem, logo teremos branding do PCC nomeando teatros ou estádios: Arena Marcola! Mas desconfio que o crime só invista em áreas de infraestrutura. Questão de tempo.

O setor esportivo começa a ser reconhecido pelo potencial de retorno, segundo o MP paulista. Nada que já não se comentasse em São Paulo ou Santos. Só a polícia parecia não desconfiar. O caso recente envolve negociações de craques do meu Corinthians. Não sei se é bom negócio, dado que os jogadores brasileiros habitualmente só sabem reclamar do juiz, sempre histéricos, no padrão Gabigol, e ainda agradecem aos céus em gestos ridículos por seus míseros gols.

Um dia chegará, se Deus voltar a ser brasileiro, em que a polícia desvendará como o roubo do celular, da moto ou o sequestro acabam reinvestidos seja em apartamentos, jogadores de futebol ou automóveis importados. Difícil saber se isso acontecerá em nosso tempo aqui na Terra, já que a diversificação de investimentos parece alucinante. Os cargos eletivos surgem como nova opção posta no mercado, apura a Justiça. É um bom salário, com direito a uma quantidade imensa de assessores e muitos vales — a começar pelo combustível; como escrito, é uma cadeia sustentável de empreendedorismo. Para completar, oferece imunidade no passado, presente e futuro. Mais o prêmio de se qualificar para as emendas secretas patrocinadas — até prova em contrário — pelo acordo dos Três Poderes. É uma bufunfa de bilhões de reais.

Enquanto isso, resta-nos saudar a memória daqueles ingênuos jovens abatidos pelas forças do Estado. Quase sempre após torturas, sevícias e estupros.

 

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