sábado, 21 de setembro de 2024

Eduardo Affonso - O Sistema, a dadeira e o tubarão

O Globo

Quando o coach encontra a candidatura antissistema, temos a tempestade perfeita

Coach é, em estado de dicionário, o indivíduo que conduz os cavalos numa carruagem. Para os que ainda pensam com os próprios neurônios e se expressam em língua pátria — sem o insight de que é preciso mentoring para dar um empowerment no reframe do mindset e entrar no flow —, essa palavra não é mais que o bom e velho “cocheiro” do tempo dos nossos bisavós. A diferença é que o cocheiro de antes efetivamente levava as pessoas do ponto onde estavam para o lugar onde queriam estar — valendo-se, para isso, da exploração de uma criatura irracional na qual se colocavam antolhos, que entrava na história contra a sua vontade. Já o coach de agora...

A manipulação da boa-fé alheia remonta à serpente no Paraíso — anterior, portanto, ao surgimento da Humanidade. Passou pelo cavalo de Troia, por Zeus fingindo ser touro e cisne em suas investidas eróticas, por Labão entregando a Jacó a filha mais velha em vez de a mais nova, pela venda de terrenos na Lua, a caça aos marajás, pelo estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, pela cloroquina etc.

Todo dia saem de casa um malandro e um otário; quando os dois se encontram, nascem um esquema de pirâmide, uma terapia alternativa, uma dieta milagrosa, um novo culto religioso, a herança milionária de um príncipe nigeriano, um curso de coaching quântico — ou uma candidatura antissistema.

“Sistema” é o bicho-papão de quem amadureceu o suficiente para se convencer da inexistência do monstro embaixo da cama, mas não o bastante para deixar de enxergá-lo nas instituições e nas relações sociais. Rabo, chifres e garras estão mal disfarçados nos suspeitos de sempre: políticos, banqueiros, multinacionais, homens brancos heterossexuais (o tal sistema patriarcal). Quando o coach encontra a candidatura antissistema, temos a tempestade perfeita.

Ainda mais se ele for do tipo que vende técnicas infalíveis para nocautear tubarão (como se sabe, #somostodossurfistaspernambucanos): basta esmurrar o focinho do bicho — e, se ele comer sua mão, dê um murro com a outra. (Para saber o que fazer caso ele coma também a outra mão, adquira o módulo avançado.) O mesmo coach que, graças ao skill set, adquiriu o dom de detectar falha em turbina de helicóptero (problema também muito comum no nosso cotidiano), de serenar pilotos em pânico (“Calma, cara, faz o seu melhor; qualquer coisa eu tô aqui...”) e, com esses superpoderes, quer entrar para a política — e mudar “o Sistema”.

Sua estratégia era mandar para o espaço aquele blá-blá-blá de accountability, leadership, mindfulness e actionable steps e investir na “maior baixaria de todos os tempos”. Desestabilizar os adversários sem o uso de argumentos — apenas com pejorativos do tipo “bananinha” e “arregão”. Caracterizar propostas alheias como “palhaçada”. Questionar a hombridade de uns e a masculinidade de outros. Só não contava com a astúcia do acaso e explosiva mistura de um sujeito de pavio curto com uma cadeira ao alcance da mão. Aí a valentia ante a fera fictícia e o sangue-frio diante da turbina em pane deram lugar à maca, à máscara de oxigênio, à camisola hospitalar e à pulseirinha verde a denunciar a encenação.

O coach parece fora de combate, e a política volta a ser aquele lugar dominado pelo “Sistema”, em que promessas infactíveis sejam renovadas a cada eleição. E a cadeira possa mais que o tubarão.

 

2 comentários:

Mais um amador disse...

O primeiro parágrafo foi o suficiente para fechar a conta.

😏😏😏

Daniel disse...

O colunista poderia ter incluído no segundo parágrafo o estelionato eleitoral do segundo mandato de FHC, que teve inflação inferior a 2% em 1998 antes da eleição e 20% em 1999 no primeiro ano do novo mandato, também com gigantesca diferença no dólar e em outras políticas econômicas em cada ano destes. Mas lembrar isto iria contra sua ideologia... Melhor reforçar os velhos preconceitos...