Folha de S. Paulo
Agressões verbais e físicas tornaram-se uma
cifra importante para disputar atenção e votos
Não são apenas as queimadas que
vêm deixando a nossa atmosfera irrespirável. Como já disse, a suspensão da
civilidade, a inabilidade para o diálogo, as discussões que movem-se aos ventos
das escaramuças em fluxo contínuo também alastram-se tal como os incêndios
florestais.
Disso dá testemunho o debate eleitoral à Prefeitura de São Paulo. A cada ringue (sic), via-se/ouvia-se a dicção dos candidatos subir progressivamente os decibéis até que a voz mal dita alcançou a estratosfera.
Ao vivo e em cores, o Brasil (o debate foi
nacionalizado pelos memes) viu Datena arremessar uma cadeira
contra Marçal. O irrefreável lançamento coroou uma situação com a
qual estamos sendo condescendentes: as tintas da barbárie que envernizam as
falas e gestos dos candidatos ultrapassaram os limites do obsceno. Até onde
pude acompanhar, as reações ao ato detiveram-se em acionar a chave explicativa
que acessou o território do machismo e
da força máscula.
Não nego essa dimensão. Mas é preciso que
desçamos analiticamente alguns níveis abaixo dessa ponta do iceberg para que
outras vias de explicação venham à superfície. A performance grotesca de dois
homens, dois candidatos ao comando da maior cidade da América Latina, indicia
como o exercício da política chegou a um patamar de indignidade em que as
agressões verbais e físicas tornaram-se uma cifra importante para disputar
atenção e votos, fixando-se como regra.
Enquanto escrevo, relembro as menções
literárias ao longo cortejo de acusações diárias que alimentou o jornalismo no
início do século 20. Lima Barreto,
em "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", diz: "Foi sempre
coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se abraçaram efusivamente,
com as maiores mostras de amigos, vinham ao jornal denunciar-se uns aos
outros".
Claro que no caso em tela não se trata de
amigos que se abraçavam efusivamente, até porque na dinâmica do ringue, animada
por memes, um abraço cordial pode vir a atrapalhar a performance regressiva que
eleitores e audiência resolveram estimular e subscrever.
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