sábado, 12 de outubro de 2024

Aldo Fornazieri - Crise de sentido

CartaCapital

O campo progressista paga nas urnas o preço do anacronismo

O Brasil que emerge das urnas do primeiro turno das eleições municipais de 2024 é um país de centro-direita. O segundo turno poderá ter um viés mais à direita ou mais à esquerda, mas não conseguirá mudar essa conclusão. Somente 53 cidades terão segundo turno, dentre as quais 15 capitais. Como referência, o PT está no segundo turno em quatro capitais e o PL, em nove.

Três partidos de centro-direita – PSD, MDB e PP – foram os grandes campões. O PSD passou de 657 prefeituras conquistadas em 2020 para 882. O MDB, de 793 para 856. O PP, de 690 para 748. O Republicanos, o União Brasil e o direitista PL também cresceram.

Os partidos mais alinhados à direita passaram de 2.502 prefeituras conquistas em 2020 para 2.626. Foi o melhor resultado desde o ano 2000. O avanço foi de 5%. Os partidos tipicamente de esquerda caíram e tiveram uma redução de 13%. Passaram de 852 cidades conquistadas em 2020 para 742. As siglas mais de centro conquistaram agora 2.103 prefeituras, com uma leve perda em relação ao pleito passado.

Em que pese o PT ter passado de 182 prefeituras conquistas em 2020 para 248 agora, não dá para dizer que se trata de uma recuperação. Em 2016, no auge da crise do petismo, o partido tinha conquistado 252 prefeituras. Muitas das prefeituras conquistadas agora são de cidades pequenas, com baixo impacto econômico e eleitoral e de escassa influência na opinião pública. O ministro Alexandre Padilha e alguns dirigentes do partido não podem vender uma derrota como uma vitória. Rede, PCdoB, PDT, PSOL e PV tiveram perdas significativas. O PSOL não elegeu nenhum prefeito e Guilherme Boulos tornou-se a tábua de salvação do partido. No campo progressista, além do PT, o PSB teve um crescimento significativo, de 253 prefeituras conquistadas há quatro anos para 312 agora.

No estado de São Paulo, o PT colheu derrotas importantes. Em Osasco perdeu no primeiro turno. O partido teve também uma derrota simbólica em Araraquara, governada em segundo mandato por Edinho Silva, provável futuro presidente do PT. Os petistas projetavam Araraquara como um modelo de gestão bem-sucedido de cidades médias do interior. Ficou de fora do segundo turno em São Bernardo, Santo André, Guarulhos, Campinas e Santos, cidades já governadas pelo partido.

As causas da derrota das esquerdas são múltiplas e sérias. A causa mais geral é que as esquerdas vivem uma crise de sentido, de projeto ou de estratégia. As esquerdas não sabem para onde ir e estão fora do nosso tempo. Tornaram-se anacrônicas. Essa crise de projeto tem vários desdobramentos. Ela se desdobra em crise de direção, de liderança, de capacidade de ­persuasão e de formulação de projetos e de propostas para atender às demandas sociais.

A principal marca do nosso tempo é a crise ambiental. São poucos os candidatos e partidos de esquerda que se apropriam da agenda da crise e da sustentabilidade de forma efetiva. A Rede, que adota o tema ambiental como central, tem pouca capacidade de traduzi-lo em políticas públicas concretas.

A segunda marca do nosso tempo é a transição digital. As esquerdas são ainda analógicas. Suas retóricas remetem mais a uma linguagem dos tempos da sociedade industrial das grandes unidades fabris do que ao tempo das mudanças velozes da era digital e da Inteligência Artificial. Falam para um tipo de trabalhadores que se tornou minoria. Os trabalhadores do mundo digital e uberizado têm outras aspirações, outras relações de trabalho, outras demandas, outras subjetividades.

Os trabalhadores do mundo digital e uberizado têm outras subjetividades

A par desse anacronismo das esquerdas, elas não compreenderam também as implicações do encontro entre atividade política e as tecnologias digitais (tecnopolítica) e de suas decorrências e desdobramentos. Esse encontro permite projetar liderança, poder, persuasão e engajamento. É um dos mais potentes meios de atividade política quando se sabe usá-lo. A extrema-direita navega quase sozinha nesse espaço. Basta olhar para a projeção de lideranças como Nikolas Ferreira, Pablo Marçal, Bruno Engler, Topázio Neto (prefeito de Florianópolis) e Lucas Pavanato (candidato a vereador mais votado de São Paulo), entre outros.

Em conexão com esse fenômeno, é fato que hoje a direita projeta muito mais lideranças jovens do que a esquerda. As igrejas evangélicas são escolas de formação de lideranças. A formação de lideranças, antiga prática e vocação das esquerdas, é uma atividade que sofreu forte extravio nesse campo político, pois as fundações e os cursos de formação das esquerdas desenvolvem conteúdos que oscilam entre a gestão formalística e fórmulas ideológicas abstratas e sem substância na realidade.

As esquerdas perdem para a extrema-direita num terreno mais complexo: o da ideologia, dos valores e da família. É indiscutível que a direita consegue mobilizar mais afetos com discursos contrários à “ideologia de gênero”, ao aborto, às pautas LGBTQIA+ e em defesa da família. O tema da família, por exemplo, é quase ausente nas pautas das esquerdas. Essas pautas vêm enfatizadas com forte retórica de um cristianismo conservador e quase violento, desdobrado das teorias da guerra espiritual. As igrejas evangélicas ocupam os territórios periféricos e os tornam enclaves impenetráveis para as esquerdas, que só chegam por perto em anos eleitorais.

As esquerdas perderam também a primazia dos programas sociais compensatórios. Hoje são praticados por qualquer partido. Sem essa paternidade, as esquerdas não têm alternativa nem para a teologia da prosperidade dos evangélicos nem para o discurso do empreendedorismo da extrema-direita do tipo Marçal.

Extraviadas no tempo, as esquerdas não conseguem propor programas inovadores nas cidades que façam convergir a transição ecológica, a transição digital, com conexões localizadas nos territórios que envolvam saúde, cultura, esportes, letramentos, serviços e atividades econômicas criativas e colaborativas. As tecnologias digitais permitem a construção de plataformas que articulem todos esses serviços e atividades. Mas a crise de mentalidade impede atualizações que coloquem em acordo uma visão de mundo consoante com os desafios do século XXI.

Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.

4 comentários:

Mais um amador disse...

Se for chorar manda áudio.

🤭🤭🤭

( Não resisti. )

Anônimo disse...

Se fosse alguém de Direita que escrevesse isto, poderíamos pensar que seria um ataque dum adversário. Escrito por alguém de Esquerda, só podemos concordar e tentar acordar.

Mais um amador disse...

" A esquerda morreu. "

Vladimir Safatle

😏😏😏

Anônimo disse...

Mas a Esquerda nunca morre!!