quinta-feira, 26 de junho de 2025

Um abismo entre os trabalhadores por conta própria - João Saboia*

Valor Econômico

As políticas públicas voltadas para os trabalhadores por conta própria devem levar em consideração essas diferenças

Há décadas a análise do mercado de trabalho no Brasil tem sido desenvolvida separando os segmentos formal e informal. Em geral, a produtividade e as condições de trabalho são muito melhores no primeiro que no segundo. Além disso há a ideia de que o segmento informal funciona como uma espécie de esponja, absorvendo as pessoas que perdem seus empregos formais em momentos de crise e as devolvem quando a conjuntura melhora.

Trata-se de uma descrição muito simplificada do comportamento da economia que tem sido testada nos últimos anos mostrando resultados ambíguos. Na crise da covid, por exemplo, os trabalhadores informais foram muito mais atingidos do que os formais, tendo sido necessária a criação do auxílio emergencial para que pudessem sobreviver naquele período. Em outras crises, efetivamente, o setor informal cresceu e, de certa forma, absorveu parte daqueles expelidos do setor formal da economia.

Em nosso artigo de 27 de maio publicado no Valor analisamos a evolução dos trabalhadores por conta própria ao longo dos anos 2019/2024 cobrindo, portanto, o período da covid, destacando suas características e as mudanças ocorridas em seu perfil. No final de 2024 representavam cerca de um quarto da população ocupada no país. Tais trabalhadores são usualmente vistos como fazendo parte de um contingente de pessoas em situação desfavorável frente àquelas que estão inseridas no mercado com empregos regulares. Há a ideia de que estariam desejosas e dispostas a migrarem para empregos com carteira assinada no setor formal da economia. Tal visão é apenas parcialmente verdadeira. Muitos trabalhadores por conta própria estão relativamente bem-posicionados, em situação estável e com rendimentos superiores aos que conseguiriam obter se trocassem sua atual situação.

Voltamos a explorar neste artigo os dados dos trabalhadores por conta própria separando aqueles que possuem CNPJ dos demais, distinguindo assim os formais dos informais. Eles representavam pouco mais da quarta parte do conjunto de trabalhadores por conta própria no final do ano passado. Como será visto, os dois grupos são muito distintos em termos de escolaridade, cor, ocupações, jornadas de trabalho e rendimento, entre outras variáveis. Como era de se esperar, os formais (com CNPJ) estão em situação muito mais favorável.

Antes de entrar na comparação das características desses trabalhadores um resultado que se destaca é o forte crescimento do número de trabalhadores por conta própria com CNPJ nos últimos cinco anos, que atingiu impressionantes 35%, sendo responsável pelo incremento total de trabalhadores por conta própria no período. Aqueles sem CNPJ permaneceram praticamente estáveis. Atribuímos esse resultado à maior conscientização das pessoas sobre a importância da cobertura da Previdência Social e ao crescimento do número de microempreendedores individuais (MEI).

Na escolaridade os diferenciais entre os dois grupos são enormes. Enquanto 34% daqueles com CNPJ possuem o curso superior completo, apenas 12% dos demais estão na mesma situação. Em contrapartida os percentuais se invertem ao serem considerados aqueles com até o fundamental completo - 17% e 42%, respectivamente. Ao analisar a cor das pessoas também há fortes diferenças com 57% de brancos entre os que possuem CNPJ e apenas 39% nos demais. Os homens representam cerca de dois terços dos trabalhadores por conta própria nos dois casos. Também não há grandes diferenças em suas faixas etárias.

Um dos pontos que mais chama a atenção são as extensas jornadas de trabalho daqueles com CNPJ. Apenas 21% trabalham até 39 horas, enquanto entre os demais 40% estão em situação análoga. Na extremidade superior, há 22% dos primeiros trabalhando 49 horas ou mais e apenas 13% entre os que não possuem CNPJ.

As melhores ocupações cabem aos trabalhadores por conta própria com CNPJ. Entre eles 21% estão naquelas que exigem nível superior como profissionais das ciências e da saúde, de tecnologias, de direito entre outras áreas, e 12% em ocupações de técnicos de nível médio. Já entre os que não possuem CNPJ os percentuais não passam de 12% e 4%, respectivamente.

Como consequência de tantas diferenças entre os dois grupos analisados a remuneração daqueles com CNPJ é muito superior à dos demais. No final de 2024 a remuneração média dos trabalhadores por conta própria com CNPJ atingia R$ 4.680, enquanto não passava de R$ 2.054 entre os demais. Parte dessa diferença poderia ser atribuída ao maior número de horas trabalhadas por quem tem CNPJ, mas as diferenças de remuneração são muito maiores que as das jornadas de trabalho.

Poderia também ser argumentado que na medida em que aqueles que possuem CNPJ estão em geral em melhores ocupações que os demais, nada mais natural do que receberem rendimentos médios mais elevados. Ocorre que ao considerar as mais diversas ocupações, os rendimentos são sistematicamente maiores para os trabalhadores por conta própria com CNPJ.

Os resultados acima deixam claro que não se pode considerar os trabalhadores por conta própria no Brasil como um único grupo no interior do mercado de trabalho do país. Consequentemente, as políticas públicas voltadas para eles devem levar em consideração suas diferenças e os anseios diferenciados no interior desse segmento de trabalhadores.

O presidente Lula foi criado no meio sindical e, em termos de visão do mercado de trabalho, talvez ainda possua um certo viés mais voltado para o setor formal da economia. Nos últimos anos, entretanto, tem havido mudanças significativas na forma de inserção das pessoas no mercado de trabalho que precisam ser levadas em consideração. Há um sonho de muitos em se transformarem em trabalhadores autônomos bem-sucedidos e, eventualmente, abrirem seus próprios negócios e se estabelecerem como microempreendedores ou pequeno empresários. É preciso saber falar com essas pessoas e entender suas ambições.

O atual governo tem focado bastante nos mais pobres da sociedade, transferindo renda diretamente para eles através de políticas assistenciais como o Bolsa Família, o BPC etc. Essas são medidas importantes que procuram garantir a sobrevivência das pessoas mais vulneráveis, devendo ser preservadas e ampliadas. Ao mesmo tempo é preciso não deixar de dialogar com todos aqueles que estão no mercado de trabalho, inclusive fora de seu núcleo formal (com carteira assinada). Um eventual distanciamento talvez ajude a explicar as dificuldades do governo em obter avaliações mais favoráveis nas recentes pesquisas de opinião pública.

*João Saboia é professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ

 

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