Valor Econômico
As políticas públicas voltadas para os
trabalhadores por conta própria devem levar em consideração essas diferenças
Há décadas a análise do mercado de trabalho
no Brasil tem sido desenvolvida separando os segmentos formal e informal. Em
geral, a produtividade e as condições de trabalho são muito melhores no
primeiro que no segundo. Além disso há a ideia de que o segmento informal
funciona como uma espécie de esponja, absorvendo as pessoas que perdem seus
empregos formais em momentos de crise e as devolvem quando a conjuntura
melhora.
Trata-se de uma descrição muito simplificada do comportamento da economia que tem sido testada nos últimos anos mostrando resultados ambíguos. Na crise da covid, por exemplo, os trabalhadores informais foram muito mais atingidos do que os formais, tendo sido necessária a criação do auxílio emergencial para que pudessem sobreviver naquele período. Em outras crises, efetivamente, o setor informal cresceu e, de certa forma, absorveu parte daqueles expelidos do setor formal da economia.
Em nosso artigo de 27 de maio publicado
no Valor analisamos
a evolução dos trabalhadores por conta própria ao longo dos anos 2019/2024
cobrindo, portanto, o período da covid, destacando suas características e as
mudanças ocorridas em seu perfil. No final de 2024 representavam cerca de um
quarto da população ocupada no país. Tais trabalhadores são usualmente vistos
como fazendo parte de um contingente de pessoas em situação desfavorável frente
àquelas que estão inseridas no mercado com empregos regulares. Há a ideia de
que estariam desejosas e dispostas a migrarem para empregos com carteira
assinada no setor formal da economia. Tal visão é apenas parcialmente
verdadeira. Muitos trabalhadores por conta própria estão relativamente
bem-posicionados, em situação estável e com rendimentos superiores aos que
conseguiriam obter se trocassem sua atual situação.
Voltamos a explorar neste artigo os dados dos
trabalhadores por conta própria separando aqueles que possuem CNPJ dos demais,
distinguindo assim os formais dos informais. Eles representavam pouco mais da
quarta parte do conjunto de trabalhadores por conta própria no final do ano
passado. Como será visto, os dois grupos são muito distintos em termos de
escolaridade, cor, ocupações, jornadas de trabalho e rendimento, entre outras
variáveis. Como era de se esperar, os formais (com CNPJ) estão em situação muito
mais favorável.
Antes de entrar na comparação das
características desses trabalhadores um resultado que se destaca é o forte
crescimento do número de trabalhadores por conta própria com CNPJ nos últimos
cinco anos, que atingiu impressionantes 35%, sendo responsável pelo incremento
total de trabalhadores por conta própria no período. Aqueles sem CNPJ
permaneceram praticamente estáveis. Atribuímos esse resultado à maior
conscientização das pessoas sobre a importância da cobertura da Previdência
Social e ao crescimento do número de microempreendedores individuais (MEI).
Na escolaridade os diferenciais entre os dois
grupos são enormes. Enquanto 34% daqueles com CNPJ possuem o curso superior
completo, apenas 12% dos demais estão na mesma situação. Em contrapartida os
percentuais se invertem ao serem considerados aqueles com até o fundamental
completo - 17% e 42%, respectivamente. Ao analisar a cor das pessoas também há
fortes diferenças com 57% de brancos entre os que possuem CNPJ e apenas 39% nos
demais. Os homens representam cerca de dois terços dos trabalhadores por conta
própria nos dois casos. Também não há grandes diferenças em suas faixas
etárias.
Um dos pontos que mais chama a atenção são as
extensas jornadas de trabalho daqueles com CNPJ. Apenas 21% trabalham até 39
horas, enquanto entre os demais 40% estão em situação análoga. Na extremidade
superior, há 22% dos primeiros trabalhando 49 horas ou mais e apenas 13% entre
os que não possuem CNPJ.
As melhores ocupações cabem aos trabalhadores
por conta própria com CNPJ. Entre eles 21% estão naquelas que exigem nível
superior como profissionais das ciências e da saúde, de tecnologias, de direito
entre outras áreas, e 12% em ocupações de técnicos de nível médio. Já entre os
que não possuem CNPJ os percentuais não passam de 12% e 4%, respectivamente.
Como consequência de tantas diferenças entre
os dois grupos analisados a remuneração daqueles com CNPJ é muito superior à
dos demais. No final de 2024 a remuneração média dos trabalhadores por conta
própria com CNPJ atingia R$ 4.680, enquanto não passava de R$ 2.054 entre os
demais. Parte dessa diferença poderia ser atribuída ao maior número de horas
trabalhadas por quem tem CNPJ, mas as diferenças de remuneração são muito
maiores que as das jornadas de trabalho.
Poderia também ser argumentado que na medida
em que aqueles que possuem CNPJ estão em geral em melhores ocupações que os
demais, nada mais natural do que receberem rendimentos médios mais elevados.
Ocorre que ao considerar as mais diversas ocupações, os rendimentos são
sistematicamente maiores para os trabalhadores por conta própria com CNPJ.
Os resultados acima deixam claro que não se
pode considerar os trabalhadores por conta própria no Brasil como um único
grupo no interior do mercado de trabalho do país. Consequentemente, as
políticas públicas voltadas para eles devem levar em consideração suas
diferenças e os anseios diferenciados no interior desse segmento de
trabalhadores.
O presidente Lula foi criado no meio sindical
e, em termos de visão do mercado de trabalho, talvez ainda possua um certo viés
mais voltado para o setor formal da economia. Nos últimos anos, entretanto, tem
havido mudanças significativas na forma de inserção das pessoas no mercado de
trabalho que precisam ser levadas em consideração. Há um sonho de muitos em se
transformarem em trabalhadores autônomos bem-sucedidos e, eventualmente,
abrirem seus próprios negócios e se estabelecerem como microempreendedores ou
pequeno empresários. É preciso saber falar com essas pessoas e entender suas
ambições.
O atual governo tem focado bastante nos mais
pobres da sociedade, transferindo renda diretamente para eles através de
políticas assistenciais como o Bolsa Família, o BPC etc. Essas são medidas
importantes que procuram garantir a sobrevivência das pessoas mais vulneráveis,
devendo ser preservadas e ampliadas. Ao mesmo tempo é preciso não deixar de
dialogar com todos aqueles que estão no mercado de trabalho, inclusive fora de
seu núcleo formal (com carteira assinada). Um eventual distanciamento talvez
ajude a explicar as dificuldades do governo em obter avaliações mais favoráveis
nas recentes pesquisas de opinião pública.
*João Saboia é professor
emérito do Instituto de Economia da UFRJ
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