sábado, 14 de junho de 2025

Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa - Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo

Dispor-se ou não a fazer ao menos um modesto esforço para levar a sério o vocábulo ‘política’ equivale à diferença entre um cidadão e um marginal

Faz tempo que a discussão sobre o ajuste orçamentário insipidou o noticiário brasiliense; desculpem-me, pois, os leitores se retorno a três outras coisas insípidas que me empenho em lhes expor a cada duas semanas.

O primeiro dos três é Lula, que não é propriamente um aborrecimento, mas uma preocupação que ainda aflige todos nós, brasileiros. O segundo é nosso desinteresse pela política, de modo geral, no qual chegamos a intuir algo de errado, mas carecemos de potência para sobrepujar nossa preguiça e o gozo de alguns prazeres que, bem ou mal, vez por outra nos é dado desfrutar. O terceiro, que na verdade é um resumo dos dois anteriores, é a certeza de que, mesmo se tivéssemos as qualidades que a situação requer, o esforço individual de cada um não faria grande diferença.

Comecemos, pois, pelo começo, ou seja, por Lula. No ponto em que nos encontramos, a opinião pública parece dividida em duas partes: de um lado, a dos que temem que ele não se reeleja; e, do outro, a dos que até pensam em mudar de país caso ele saia vitorioso. Com essa primeira questão, digo-lhes sinceramente: não estou convencido de que ele sequer se candidate e, caso o faça, não logrará a vitória.

Digo isso por várias razões. Não tanto pela idade avançada, que por ora não lhe parece tolher a saúde, mas porque, nessa altura, mesmo os grandes estadistas sentem que a memória de seus grandes feitos empalidece, ao mesmo tempo que as delícias da nona década se vão delineando com maior clareza. A essa cogitação há que acrescentar que Lula, mesmo modesto como é, percebe que já não é tão amado como foi outrora. A inflexão que o levou a ser admirado no mundo inteiro vai aos poucos se invertendo, transformando-se numa curva assintótica. Por último, a lucidez não o abandonou. Se o próprio governo admite que nosso país pode resvalar para uma crise dentro de dois anos, que cenário lhe virá à mente quando pensar naquela outra, verdadeiramente macabra, que muitos economistas consideram quase inexorável, 15 ou 20 anos a partir de hoje?

O segundo aborrecimento que prometi lhes trazer é a coceira que o simples vocábulo política nos causa. Essa é a sensação predominante entre os cerca de 8 bilhões de seres humanos que ora habitam a Terra. No Brasil, indagado sobre o que entende por política, a resposta mais provável será que nunca pensou e não pretende pensar no assunto. Os mais “politizados” dirão que são as falcatruas que soem ocorrer cotidianamente em Brasília. E os congressistas? E os integrantes do “Centrão”? Sobre estes, meu hipotético cidadão com certeza dirá que poderá oferecer seu voto e algum outro penduricalho em troca de um emprego para um parente ou amigo ou de algum benefício em seu município.

Sobre a gritaria e os insultos que de tempos em tempos se ouvem nos plenários e comissões, ele admitirá que se trata de uma questão filosófica mais complexa, quem sabe algo que traz alojado no subconsciente desde o tempo das cavernas. Quem contra-argumentar que o estudo sério da política, refazendo todo o caminho de Aristóteles até (por que não?) alguns dos melhores brasileiros, pode ser uma experiência prazerosa e útil, quiçá exponha os ouvidos a uma sonora gargalhada.

O leitor por certo terá entendido que estou me referindo ao Brasil, mas poderia ser a qualquer país, até os Estados Unidos, aquele Dr. Jekyll que parece estar agora se transformando em Mr. Hyde. Sob Donald Trump, a outrora “democracia exemplar” (e nem era tanto) parece estar resvalando para uma caricatura de si mesma.

No terceiro ponto que me pareceu merecer atenção, devo admitir que meu hipotético cidadão tem boa dose de razão. Se a indagação que lhe fizemos diz respeito a uma coletividade de grande porte – a um país, mesmo dos menos populosos –, é certo, certíssimo, que a participação individual pode ser comparada a um grão de areia. Claro, nosso hipotético interlocutor será milhares ou milhões de vezes maior se for um daqueles 3% ou 4% que detêm metade da renda e da riqueza do País, mas, no Brasil, será meio grão de areia, se tanto, se ele for um dos 30% inteiramente destituídos da sorte, que não sabem hoje o que vão comer amanhã – este cidadão que mal se vê como membro de um país e tampouco compreende o que significa identificar-se com uma “nação” ou com uma “esfera pública”. Ora, se assim é, o leitor que chegou até aqui poderá objetar: para quê, então, dar-lhes atenção?

Aqui, precisamente, é onde podemos cogitar que algumas dúzias de grãos de areia podem se ver e ser vistas como uma fração considerável de uma grande praia; compreender ou não as realidades que esbocei no parágrafo anterior. E, por conseguinte, dispor-se ou não a fazer ao menos um modesto esforço para levar a sério o vocábulo “política” equivale à diferença entre um cidadão e um marginal. Ou, dizendo-o de outro modo, equivale à diferença entre ter e não ter caráter. A merecer ou não merecer ser tido como parte de uma nação.

 

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