O Estado de S. Paulo
Dispor-se ou não a fazer ao menos um modesto esforço para levar a sério o vocábulo ‘política’ equivale à diferença entre um cidadão e um marginal
Faz tempo que a discussão sobre o ajuste
orçamentário insipidou o noticiário brasiliense; desculpem-me, pois, os
leitores se retorno a três outras coisas insípidas que me empenho em lhes expor
a cada duas semanas.
O primeiro dos três é Lula, que não é propriamente um aborrecimento, mas uma preocupação que ainda aflige todos nós, brasileiros. O segundo é nosso desinteresse pela política, de modo geral, no qual chegamos a intuir algo de errado, mas carecemos de potência para sobrepujar nossa preguiça e o gozo de alguns prazeres que, bem ou mal, vez por outra nos é dado desfrutar. O terceiro, que na verdade é um resumo dos dois anteriores, é a certeza de que, mesmo se tivéssemos as qualidades que a situação requer, o esforço individual de cada um não faria grande diferença.
Comecemos, pois, pelo começo, ou seja, por
Lula. No ponto em que nos encontramos, a opinião pública parece dividida em
duas partes: de um lado, a dos que temem que ele não se reeleja; e, do outro, a
dos que até pensam em mudar de país caso ele saia vitorioso. Com essa primeira
questão, digo-lhes sinceramente: não estou convencido de que ele sequer se
candidate e, caso o faça, não logrará a vitória.
Digo isso por várias razões. Não tanto pela
idade avançada, que por ora não lhe parece tolher a saúde, mas porque, nessa
altura, mesmo os grandes estadistas sentem que a memória de seus grandes feitos
empalidece, ao mesmo tempo que as delícias da nona década se vão delineando com
maior clareza. A essa cogitação há que acrescentar que Lula, mesmo modesto como
é, percebe que já não é tão amado como foi outrora. A inflexão que o levou a
ser admirado no mundo inteiro vai aos poucos se invertendo, transformando-se
numa curva assintótica. Por último, a lucidez não o abandonou. Se o próprio
governo admite que nosso país pode resvalar para uma crise dentro de dois anos,
que cenário lhe virá à mente quando pensar naquela outra, verdadeiramente
macabra, que muitos economistas consideram quase inexorável, 15 ou 20 anos a
partir de hoje?
O segundo aborrecimento que prometi lhes
trazer é a coceira que o simples vocábulo política nos causa. Essa é a sensação
predominante entre os cerca de 8 bilhões de seres humanos que ora habitam a
Terra. No Brasil, indagado sobre o que entende por política, a resposta mais
provável será que nunca pensou e não pretende pensar no assunto. Os mais
“politizados” dirão que são as falcatruas que soem ocorrer cotidianamente em
Brasília. E os congressistas? E os integrantes do “Centrão”? Sobre estes, meu
hipotético cidadão com certeza dirá que poderá oferecer seu voto e algum outro
penduricalho em troca de um emprego para um parente ou amigo ou de algum
benefício em seu município.
Sobre a gritaria e os insultos que de tempos
em tempos se ouvem nos plenários e comissões, ele admitirá que se trata de uma
questão filosófica mais complexa, quem sabe algo que traz alojado no
subconsciente desde o tempo das cavernas. Quem contra-argumentar que o estudo
sério da política, refazendo todo o caminho de Aristóteles até (por que não?)
alguns dos melhores brasileiros, pode ser uma experiência prazerosa e útil,
quiçá exponha os ouvidos a uma sonora gargalhada.
O leitor por certo terá entendido que estou
me referindo ao Brasil, mas poderia ser a qualquer país, até os Estados Unidos,
aquele Dr. Jekyll que parece estar agora se transformando em Mr. Hyde. Sob
Donald Trump, a outrora “democracia exemplar” (e nem era tanto) parece estar
resvalando para uma caricatura de si mesma.
No terceiro ponto que me pareceu merecer
atenção, devo admitir que meu hipotético cidadão tem boa dose de razão. Se a
indagação que lhe fizemos diz respeito a uma coletividade de grande porte – a
um país, mesmo dos menos populosos –, é certo, certíssimo, que a participação
individual pode ser comparada a um grão de areia. Claro, nosso hipotético
interlocutor será milhares ou milhões de vezes maior se for um daqueles 3% ou
4% que detêm metade da renda e da riqueza do País, mas, no Brasil, será meio
grão de areia, se tanto, se ele for um dos 30% inteiramente destituídos da
sorte, que não sabem hoje o que vão comer amanhã – este cidadão que mal se vê
como membro de um país e tampouco compreende o que significa identificar-se com
uma “nação” ou com uma “esfera pública”. Ora, se assim é, o leitor que chegou
até aqui poderá objetar: para quê, então, dar-lhes atenção?
Aqui, precisamente, é onde podemos cogitar
que algumas dúzias de grãos de areia podem se ver e ser vistas como uma fração
considerável de uma grande praia; compreender ou não as realidades que esbocei
no parágrafo anterior. E, por conseguinte, dispor-se ou não a fazer ao menos um
modesto esforço para levar a sério o vocábulo “política” equivale à diferença
entre um cidadão e um marginal. Ou, dizendo-o de outro modo, equivale à
diferença entre ter e não ter caráter. A merecer ou não merecer ser tido como
parte de uma nação.
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