quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Fortemente constrangido


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O envio da diretoria da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para o altar dos sacrifícios já no primeiro dia útil da crise instalada no fim de semana, quando a revista Veja exibiu prova da existência de uma usina de invasões de privacidades em Brasília, foi entendido como um sinal de rigor e agilidade por parte do presidente Luiz Inácio da Silva.

Houve, de fato, uma alteração no padrão habitualmente adotado no Palácio do Planalto para a administração de escândalos. Mas nada que autorize entusiasmos com a rapidez e a austeridade da “ação” do presidente da República.

Primeiro, porque não foi uma ação, foi uma reação. Segundo, não foi rápida e, terceiro, não revelou o vigor e sim a fragilidade de Lula diante de um Supremo Tribunal Federal unido e disposto ao combate, caso se repetisse o roteiro de sempre.

Aquele velho conhecido: surge a denúncia, uma sindicância interna é aberta, a Polícia Federal inicia inquérito para investigar “a fundo”, ministros produzem versões contraditórias sobre o episódio, o Congresso põe o caso em alguma CPI e o presidente Luiz Inácio da Silva queda-se em mutismo absoluto esperando a passagem do vendaval.

Se a coisa fica muito feia, toma-se a corda em seu lado mais fraco, providencia-se ali uma punição a título de satisfação ao público e assunto encerrado.

Desta vez, o governo fez uma passada meteórica pelas preliminares e apresentou logo um suspeito. E por que fez isso? Porque se viu diante de uma emergência: ou fazia alguma coisa logo, apresentava um alvo qualquer, ou se arriscaria a se tornar ele mesmo o alvo de uma artilharia pesada.

A cobrança pública por providências, desde sábado, não partiu de um Congresso desmoralizado, nem de uma oposição acuada ou de uma opinião pública difusamente indignada.

Quem pressionava era a cúpula do Poder Judiciário, a guardiã da Constituição, dona da palavra final sobre as leis, a única instituição com poder e credibilidade suficientes para, em determinado momento - não precisava nem dizer, bastava insinuar que o presidente da República hesitava na defesa do Estado de Direito -, levar Lula às cordas.

Daí a necessidade de alterar a programação habitual e começar pelo fim: a apresentação do suspeito. Um ato inédito. O governo sempre se recusou a adotar o método consagrado no governo de Itamar Franco, quando seu então braço direito, Henrique Hargreaves, foi afastado do Palácio em função de denúncias envolvendo irregularidades nos Correios e reconduzido ao posto depois de inocentado.

Não que tenham faltado cobranças nesse sentido, ao contrário. As inúmeras foram rechaçadas pelo governo Lula sob o argumento da presunção de inocência e que demissões, mesmo temporárias, equivaleriam a condenações antecipadas.

A regra, até agora seguida sem exceção, levaria à suposição de que o governo agiu agora de forma diferente porque já dispunha de base sólida para apresentar o suspeito sem correr o risco de transformá-lo em réu injustamente.

A reação das autoridades ontem em Brasília mostrou que, quem chegou a essa conclusão, precipitou-se. Do vice-presidente da República, José Alencar, ao ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, passando pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Jorge Felix, saíram todos em defesa do diretor demitido da Abin, Paulo Lacerda.

Um homem inatacável, um profissional bom e confiável, uma vítima de armação de gente interessada em desmoralizar a agência foi o mínimo que se ouviu a respeito da pessoa apresentada na noite anterior como chefe dos principais suspeitos.

Junto a esses elogios, ganharam reforço também as versões sobre a possibilidade de as escutas ilegais não terem sido produzidas dentro do aparelho de Estado, mas por quadrilhas de “ouvidores” (no mau sentido) do setor privado, vale dizer, Daniel Dantas.

Uma hipótese nem de longe a ser jogada fora, dada a trajetória de obscuridades protagonizadas pelo esquisitíssimo rapaz.

Agora, se vai nessa direção a desconfiança mais forte e se no dia seguinte o governo inteiro põe a mão no fogo por Paulo Lacerda, por que o afastamento em regime de exceção?

Por qualquer caminho que se vá, chega-se ao mesmo lugar: para proteger o presidente Lula de uma confrontação com o Supremo Tribunal Federal no âmbito onde este é autoridade máxima e àquele cabe submissão absoluta jurada no ato da posse: a legalidade.

Enaltecido o presidente poderia ser caso tivesse sido dele a iniciativa de compreender o significado da disseminação dos grampos. Mas tal entendimento não havia ainda se apresentado à cena, a despeito das várias denúncias (inclusive do próprio presidente do Supremo) sobre a propagação da invasão de privacidade da capital da República.

Apareceu apenas quando a situação foi traduzida para o idioma de Lula, um ás na distinção entre o que pode lhe render benefícios ou lhe causar prejuízos políticos no exercício do poder.

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