segunda-feira, 24 de agosto de 2009

República plena, não. Democrática, menos ainda

Renato Janine Ribeiro*
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO / ALIÁS

Aos 120 anos do regime, se falta rigor com o bem comum, sobra desprezo pelos pobres

O centenário da República foi uma efeméride importante. Naquele ano de 1989, o Brasil realizou suas primeiras eleições presidenciais em quase 40 anos. A Constituição tinha sido aprovada um ano antes - a mais democrática de nossas quatro Constituições republicanas, isto se excluirmos as outorgadas em 1937 e 1969, que não podem ser consideradas nem Constituições nem republicanas, não passando de atos de força. O ano também marcava o bicentenário da Inconfidência Mineira, nossa mais lembrada rebelião contra o poder colonial, e da Revolução Francesa, que efetuou na história do mundo o corte cirúrgico, repentino, datado, maior da História (outras mudanças, inclusive a descoberta da América, só ao longo dos anos foram revelando sua radicalidade). Duas décadas depois de seu centenário, o que dizer hoje da República, agora já aos 120 anos de idade?

A rigor, os primeiros cem anos da República foram fortemente deficitários em valor... republicano. Tivemos 40 anos de governos fraudulentos e oligárquicos, a que se seguiram 15 anos de ditadura ou quase. Nosso único período democrático ocorreu entre 1945 e 1964.

Nesse último ano, porém, começou nova e longeva ditadura. Em outras palavras, nos primeiros cem anos da República tivemos liberdades democráticas no percurso que vai da queda de Vargas ao golpe militar, e desde o fim da ditadura castrense. Somando, dá 23 anos em 100. Já os últimos 20 anos foram, todos, de liberdade política. Em outras palavras, passamos de um porcentual temporal de 20% para outro de 100% de democracia. O avanço é impressionante. Se continuarmos assim, o segundo século de república vai esmagar, em qualidade, o primeiro.

Resta muito, é verdade, em termos de ética. Não se sabe se aumentou a corrupção ou se perdemos a ingenuidade e aumentou nossa percepção da corrupção, mas a sociedade passou a considerá-la inaceitável (o que acho um avanço), porque contraria frontalmente o espírito republicano, que defende a res publica contra a apropriação privada do que a todos pertence.

Contudo, a indiferença das lideranças no Congresso e em especial no Senado à opinião pública, a censura imposta ao Estado por um magistrado, fatos reiterados essa semana, são casos que fazem muitos se decepcionarem com a política e os políticos e, não fosse a falta de ambiente para um golpe militar, não sei se o regime civil se sustentaria facilmente.

Usei democracia e república, aqui, como sinônimos, embora a rigor não o sejam . Democracia é o poder do povo, e supõe que tenham poder os polloi, os muitos, em suma, os pobres.

Quase toda democracia tem, por definição, preocupação social, porque os pobres são a maioria e, assim, escolhem quem governa. O populismo pode ser um excesso, um exagero, uma forma específica, mas toda democracia tem de mostrar um empenho em melhorar a condição dos mais pobres. Já a república é um regime que se define, a rigor, não pelo modo de eleição do governante, mas por sua preocupação com a coisa pública, com o bem comum. A democracia é quente, entusiasma (e irrita), enquanto a república é fria, racional, jurídica. Aliás, por isso tudo, uma monarquia pode ser mais republicana do que um regime no qual um general se proclame presidente, sem eleições e às vezes com um mandato vitalício.

A grande pergunta, então, que se torna ainda mais pertinente depois da queda do comunismo (isso porque ele parecia ter vindo para ficar; parecia ter trazido ganhos, ainda que a alto custo; e foi-se embora como uma página que a História apaga, como um erro, como algo que se quer esquecer), é: a Proclamação da República em 1889 foi um ganho para o Brasil? ou uma perda? A pergunta é ainda mais pertinente porque, a rigor, Pedro II poderia ser dito mais empenhado na res publica do que muitos de nossos presidentes. Mas está claro que é difícil responder. Na dimensão do tempo, o que acontece não pode ser comparado com o que poderia ter acontecido. Ao se tomar um caminho, inibe-se o outro - inibe-se até mesmo saber o que seria o outro. Mas é fato que o imperador respeitou mais a liberdade de expressão do que os presidentes da República Velha, e que no Parlamento do Império - em que pese suas eleições serem manipuladas - não se chegou ao nível de fraude que envergonha as primeiras décadas republicanas. Se coroada imperatriz, d. Isabel I certamente teria mantido a tradição que seu pai iniciara, de afastar-se dos partidos. Seria plausível abolir o poder moderador, tornar eleito o Senado, em síntese, ampliar de dentro as liberdades políticas. Uma evolução à inglesa seria possível - porque em 1889 fazia apenas meio século que a rainha Vitória subira ao trono e transformara a desmoralizada e agonizante monarquia britânica numa instituição respeitada, exemplar, e ela o conseguira justamente ao se afastar das disputas políticas, que ficaram com os eleitos do povo.

Terá nossa República sido, então, um retrocesso, como afirmou desde o início Eduardo Prado? Se afirmá-lo é impossível, porque esse caminho foi inibido historicamente, é porém duvidoso negá-lo, quando comparamos as últimas décadas do Império e as primeiras do novo regime.

Mas isso, precisamente porque o ideal republicano foi o que menos existiu no governo fatiado entre as oligarquias. A autonomia das províncias, reivindicada contra o centralismo imperial, reduziu-se a uma federação de déspotas locais. Não houve mais uma figura respeitada - que, talvez por feliz acaso, coincidiu com um imperador ilustrado - capaz de atenuar a temperatura dos conflitos. Nossa história, aliás, quase toda escrita já na recentralização do poder que recomeça em 1930, costuma omitir as guerras civis internas aos Estados, que devastaram o Rio Grande do Sul e o Nordeste.

No entanto, vivemos agora o primeiro período consistentemente republicano de nossa história. Sob a vigência da Constituição de 1946, apelos a golpes e rebeliões militares foram frequentes. O presidente Vargas foi levado ao suicídio. Juscelino, cuja gestão foi mais democrática e tolerante que todas as anteriores, enfrentou uma sucessão de movimentos armados. Quando renunciou Jânio Quadros, o quarto presidente eleito de nossa história (porque não considero eleitos os da República Velha, em que prevalecia a desonestidade eleitoral), seu vice, Goulart, só tomou posse depois de ser devidamente mutilado em seus poderes pela emenda parlamentarista. Teve paz apenas nosso primeiro presidente eleito, Dutra, talvez por ser oficial general.

Já na fase ininterruptamente constitucional que vivemos desde 1985, que começou com a Nova República, o presidente Collor só foi destituído após o devido processo legal. As liberdades de expressão, de organização e de voto, apesar de enfrentarem dificuldades nos primeiros anos pós-ditatoriais, se consolidaram. Pela primeira vez em nossa história, o povo elegeu um presidente de esquerda e ele governa sem problemas que sejam enormes. O protagonismo popular aumenta. Até o que foi pouco ético - a aprovação de uma emenda constitucional instituindo a reeleição para beneficiar quem foi eleito sob regras que a proibiam - acabou tendo um resultado benéfico, com 16 anos seguidos de estabilidade sob partidos opostos.

Regimes políticos são formatados aos poucos. Quando uma Constituição é redigida, ainda não se sabe em que vai dar. Se George Washington e Thomas Jefferson não se tivessem contentado com dois mandatos presidenciais, a história dos Estados Unidos seria diferente. Se FHC ou Lula não tivessem podido se reeleger, não teríamos tido presidentes capazes de construir consensos - um diferente do outro, mas não diferente demais - que estruturaram a política brasileira. Talvez, agora, entremos na era dos gerentes. Talvez o próximo presidente não tenha esse fôlego de líder. Mas foi bom esse período, até porque, curiosamente, perfis pessoais tão diferentes - o intelectual e o metalúrgico - granjearam ambos um respeito mundial pelo presidente do Brasil.

Quinze anos atrás, sugeri que estaríamos vivendo algo parecido à 3ª República Francesa. A primeira (1793) foi turbulenta e morreu logo depois do Terror. A segunda (1848) durou meros três anos. A terceira (1875), alternando o centro-direita e o centro-esquerda, consolidou a instrução universal, a valorização dos salários dos trabalhadores, o respeito às instituições.

Hoje a Presidência se alterna no Brasil entre dois partidos, um que tende à esquerda e outro à direita, mas ambos gravitando rumo ao centro. Isso evita a polarização excessiva, pelo menos em âmbito federal, fortalece o diálogo político, permite consensos eventuais, mesmo que não sejam explícitos. É verdade que nossa educação continua uma lástima e os avanços nessa direção - a definição de instrumentos de avaliação que permitem medir o que falta e o que pode ser feito, a convergência entre PSDB e PT sobre a necessidade e mesmo os meios de melhorar a educação - não apagam o fato de que ainda não se vê luz no fim do túnel. E é certo que nossa Previdência Social e a renda dos mais pobres continuam insuficientes para cobrir as despesas básicas. Ou seja, nosso balanço institucional e político é bem melhor que o nosso saldo social. Estamos melhor em república do que em democracia, se entendermos, como disse acima, que na democracia o conteúdo social é de sua essência. Aí, sim, falta muito.

* Professor titular de Ética e Filosofia Política da USP e autor de A Ética na Política (Editora Lazuli)

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