Sobre o significado desta avalanche de votos nos referendos já se disseram muitas coisas. Convém refletir bem a respeito, porque as novidades são grandes: afinal, é uma nova geração que está tomando a palavra. Não é pouco. Não creio que se trate só de uma condenação política de Berlusconi. Certamente, é isso também, e é fundamental. Mas no voto daqueles 25 milhões de italianos (muito além dos limites da esquerda) existe, acredito, um fenômeno mais profundo: a exigência das pessoas de se reapropriarem da suas vidas.
Pierluigi Bersani fala de uma desforra cívica. É verdade, mas em relação a quê? Não só à vergonha do “bunga bunga”, mas também (não o ocultemos) à degradação da política: a política sem finalidade, sem análise nem programa, em busca de um consenso imediato, subalterna ao poder econômico. Fiquei surpreso com a indignação de alguns sobre o “simplismo” do quesito sobre a água e a energia nuclear. Sim, era simplista, mas o que não se compreendeu é o sentimento que finalmente se revela com tanta força, depois de anos e anos em que só se fez a exaltação do indivíduo negado como pessoa, porque “a sociedade não existe”.
O que se revelou foi a demanda de “bens comuns” e de qualidade de vida. Emergiu, finalmente, uma enorme exigência de justiça que ouvi no brado de uma mulher simples: vocês nos tiraram o trabalho, tornaram-nos trabalhadores precários, enriqueceram-se escandalosamente, quero pelo menos impedi-los de tomar o mais simples dos bens comuns, que é a água. Uma ingenuidade, certamente, mas a esquerda, se for inteligente, deve compreender que existe uma enorme demanda de relações sociais, de sentido das coisas, de significados da vida, de regras. Eu parto disso. E é por essa razão (está mudando algo na relação entre política, economia e sociedade) que percebo a necessidade de um partido novo. Não mais a soma de velhas histórias. O Partido Democrático. Um sujeito político que pretende pôr em campo um movimento reformador amplo, o qual seja sustentado por uma cultura capaz de reler os problemas italianos à luz da relação cada vez mais intrínseca entre a Itália e o mundo.
Mas que análise vocês fazem — me perguntou um velho amigo —, se não levam em consideração o modo como o superpoder financeiro está mudando por toda parte os mapas sociais e a relação entre o dinheiro e a riqueza real? Percebem o que implica este tipo de austeridade imposto pela direita europeia? Vocês não terão nunca o desenvolvimento e terminarão como a Grécia.
Com efeito, esta é a grande tragédia que nos assedia, e para enfrentá-la é vital tirar do caminho este governo que não governa. Diante deste risco mortal, o dever do Partido Democrático é pôr em campo um novo projeto para a Itália.
Mas não bastará agir “de cima”: será preciso despertar os recursos mais profundos e vitais do País. Eis a grande tarefa que o PD se propõe. É a de restituir à democracia o poder de decidir, o que, no fundo, consiste em inverter a relação de subalternidade da política em relação à economia. A democracia não só como procedimento, mas como liberdade das pessoas, as quais, através de um novo poder político, sejam postas em condições de decidir o próprio destino. É aqui que se fundamenta a razão da reunificação das forças reformistas e a novidade do perfil de uma força que assume a missão de restituir ao “príncipe” (isto é, às pessoas) o enorme potencial criativo dos italianos, sua liberdade de escolher, de empreender, de se realizarem.
É neste horizonte que vejo a necessidade de reerguer a bandeira do trabalho. Um trabalho que não é só o trabalho operário, mas também, certamente, do empreendedor, do produtor, do intelectual, do artesão. Uma coisa diferente em relação ao trabalho dos tempos de Giuseppe Di Vittorio [1892-1957, dirigente histórico do sindicalismo da CGIL]. Mas uma coisa igualmente forte. Trata-se de uma ideia de justiça e solidariedade, capaz de envolver as camadas mais modernas e criativas, reconhecendo, além das necessidades, os méritos, e dando a palavra a uma nova geração que se impacienta com as velhas tramas.
Sempre tive a convicção de que não se pode formar um grande partido sem uma visão de longo período. Mas em que consiste hoje esta visão, senão em pensar o processo de emancipação social como um fenômeno que não cancela os contrastes de classe, mas não se reduz a eles? Toda a história humana foi adiante graças à progressiva libertação do indivíduo das velhas barreiras nas quais se organizara pouco a pouco a sociedade: dos vínculos feudais ao papel dos sexos e às contraposições sociais com bases ideológicas. E é por isso que não são aceitáveis as lógicas de uma oligarquia financeira que tende a invadir — inclusive através do controle da informação e dos instrumentos que produzem o “senso comum” — todos os âmbitos da vida. A sociedade não pode ser reduzida a sociedade de mercado, sem se desagregar. O indivíduo largado a si mesmo não pode apelar àquelas suas extraordinárias capacidades criativas que não vêm do simples intercâmbio econômico, mas da memória, da inteligência acumulada, da esperança e da solidariedade humana.
O desenvolvimento humano. Afinal, não seria este o objetivo e a marca identitária do Partido Democrático, a sua missão original?
Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma.
Tradução: A. Veiga Fialho
FONTE: GRAMSCI E O BRASIL
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