O Estado de S. Paulo – Domingo, 20.3.2016
A relação um tanto distante no tempo, mas real, entre duas operações judiciárias de largo alcance e a possibilidade palpável de crise geral do sistema de partidos, atingindo alguns de seus grupos fundamentais, fazem com que referências italianas frequentem obsessivamente nosso cotidiano político. Há quem agite, com certa razão, o “espantalho Berlusconi”, um populista de direita que dominou a política italiana por 20 anos, apesar de intervalos importantes, como os dos dois governos Romano Prodi e o do pós-comunista Massimo D’Alema. E a razão do êxito de Berlusconi residiria, argumenta-se, na situação de terra arrasada que teria deixado a Operação Mãos Limpas, levando ao fim partidos tradicionalíssimos como a Democracia Cristã (DC) e o Partido Socialista (PSI).
Que a fragilidade dos partidos ou sua liquidação, no rastro de grandes investigações, abra um cenário preocupante é fato mais do que sabido. Com toda a crise da representação que hoje se vive, somada à bem-vinda obsolescência dos partidos “totais”, que, segundo seus adeptos, guardariam em germe os traços fundamentais de um novo Estado, os partidos ainda são parte essencial da auto-organização da vida democrática: educam ou deveriam educar permanentemente os indivíduos, selecionam grupos dirigentes, representam interesses parciais e os levam para além desse âmbito particular, transformando-os em direitos de cidadania.
Faltando essa mediação entre sociedade civil e sociedade política – os partidos, exatamente –, o caminho fica fácil para os cavaleiros da fortuna. Berlusconi, “Il Cavaliere”, é um personagem que se enquadra perfeitamente na descrição, explorando os ventos da “antipolítica”, com o uso e abuso dos recursos da “telecracia”: com tais figuras triunfa sempre o interesse bruto, acirrando antagonismos sociais e degradando a vida civil. Leis, por exemplo, podem ser confeccionadas sob medida para resolver agruras pessoais e políticas do capo. Manobras táticas de legalidade duvidosa chegam ao estado da arte. Inevitável, assim, que a ideia de república saia ferida e uma barbárie miúda e insidiosa se dissemine, envenenando até atitudes cotidianas.
Analogamente, numa visão pessimista, o homem providencial pode estar sendo incubado neste momento, com o torvelinho que ameaça engolfar os principais partidos situacionistas, em particular o PT e o PMDB, e mesmo líderes expressivos das oposições. Recorrente, entre os maiores alvos da Lava Jato, a ideia de que se criminaliza a ação política em si mesma: em busca de protagonismo, juízes e procuradores armariam o cadafalso até para políticos oposicionistas, em tese os principais beneficiários. Ou, então, numa visão institucionalmente ainda mais perigosa, juízes, procuradores e policiais federais à frente de operações como a Lava Jato nada mais seriam do que o braço judicial de “elites”, mídia e oposição, empenhadas em golpe contra o grande partido popular e seu governo de mudanças.
De modo polêmico, e considerando o quadro de devastação institucional que ora nos aflige, é possível argumentar que a “função Berlusconi” entre nós tenha antecedido a operação judiciária e se corporificado no partido “hegemônico” da esquerda e, em especial, em seu líder indiscutível. O modo de existência e comportamento do lulopetismo esteve sempre como que inscrito no código genético: autoproclamado portador das exigências substantivas da democracia, suposto realizador, nos anos áureos entre 2003 e 2010, de uma verdadeira revolução social, a que o credenciava até a natureza operária, d’origine controllata, do dirigente máximo, por que estimularia o respeito – teórico e prático – às formas da democracia? Não seria tal respeito expressão de classe oposta ao interesse real dos trabalhadores, menos fixados em firulas jurídicas do que em ingressar no mundo do consumo (privado), a despeito de elites irracionalmente avessas à expansão do próprio capitalismo?
Titular exclusivo da representação dos trabalhadores, do PT não veio proposta de fortalecimento do sistema partidário, mas, antes, a obra deletéria de sua corrupção.
A política de alianças não constituiu a decorrência de uma ação consistente – hegemônica, desta vez sem aspas – para construir amplo consenso no sentido de boas reformas do Estado e da sociedade. A escolha do “inimigo” social-democrata, demonizado até a caricatura, obedeceu a critérios baratos de cálculo, assim como a aliança com a fina-flor do atraso oligárquico e da fisiologia, cujos métodos foram sistematizados e elevados a patamar jamais visto. Em extrema e polêmica síntese: não tivemos Berlusconi, um populista de direita, mas provavelmente tivemos – e temos – uma encarnação “de esquerda” do mesmo mal.
A esquerda italiana, para voltar ao início, estruturou-se em torno do PSI e, principalmente, do velho PCI, um partido comunista para o qual nunca foi estranha a reivindicação de uma “função nacional”, mesmo condenado, enquanto existiu, a restar na oposição por causa da guerra fria. Há já pouco mais de duas décadas, em quadro radicalmente distinto, aquele partido tenta se renovar, abandonando a matriz comunista e abrindo-se para as tradições reformistas do país, especialmente a católica. Assim, durante os 20 anos de Berlusconi a centro-esquerda pelo menos buscou recriar um instrumento útil para a Itália e a própria Europa, ameaçada pela intolerância xenófoba da extrema direita – uma força real, não mera construção de retórica oportunista, como vemos ao redor.
O desafio da esquerda brasileira consiste, precisamente, em se reinventar na crise em boa parte gerada pela força que a vem representando. Sem isso viverá uma vida de gueto, barulhenta e minoritária. E, pior, sem capacidade para retomar em outras bases a luta duríssima por um País mais decente e igualitário. Uma luta que por ora parece perdida.
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*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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