- O Globo
Prefiro sempre não acreditar em teorias conspiratórias, mas a manobra dos deputados na noite de quarta-feira na Câmara, distorcendo o sentido original das medidas contra a corrupção para transformá-las em perseguição a juízes e procuradores do Ministério Público, e a afoiteza com que o senador Renan Calheiros tentou aprovar as medidas, menos de 24 horas depois que elas saíram da Câmara, bem que poderiam ter sido parte de um plano bem engendrado por agentes infiltrados para criar um clima popular contra os parlamentares.
Justamente às vésperas das manifestações marcadas para hoje em todo o país a favor da Lava-Jato, que já incorporavam protestos contra uma tentativa de anistia do caixa 2 — que acabou sendo abortada pela reação da opinião pública — e passaram a ser contra também tal distorção do combate à corrupção.
Não poderia haver momento mais apropriado para exacerbar a opinião pública, que já não aceita esse tipo de ação política escamoteada por “emendas da meia-noite”, na boa definição do juiz Sérgio Moro.
Ontem, a Lava-Jato foi eleita pela Transparência Internacional, a principal ONG de incentivo ao combate à corrupção, como “a maior iniciativa contra a corrupção no mundo”, reafirmando o apoio internacional que a operação baseada em Curitiba vem recebendo, como modo de contrabalançar a tentativa de Lula e apoiadores de levar para o plano internacional a ideia de que ele está sendo perseguido politicamente no Brasil.
O comunicado da entidade diz que os procuradores da Lava-Jato estão desde 2014 lidando com “um dos maiores escândalos de corrupção do mundo, o caso Petrobras”, e “investigaram, processaram e obtiveram penas pesadas contra alguns dos mais poderosos membros da elite política e econômica do Brasil”. O chefe dos procuradores, Deltan Dallagnol, que tem o dom da oratória muito devido ao fato de ser pastor, no seu discurso de agradecimento pelo prêmio denunciou os ataques do Congresso Nacional contra a Lava-Jato, fazendo avaliações corretas, e utilizando o tom hiperbólico em outras ocasiões, que faz com que seu discurso perca o peso político para ganhar tons que não combinam com seu cargo, embora sejam próprios de sua convicção religiosa.
Disse acertadamente Dallagnol que “o pano de fundo desses ataques é a negociação de acordo com uma companhia que pagou algumas das maiores propinas”, referindo-se à delação premiada da empreiteira Odebrecht que foi fechada nesses últimos dias. “Dezenas de políticos foram envolvidos. Quanto mais perto estávamos do acordo, maiores eram as reações do Congresso. Nessa semana, a Câmara cruzou a linha”.
Em outra parte de sua fala, foi Dallagnol quem cruzou a linha: “Nessa semana, quando uma tragédia levou o país a um grande luto, homens impiedosos colocaram em curso uma estratégia cruel. Enquanto o Brasil chorava o acidente aéreo que matou diversos jogadores de futebol, enquanto as manchetes estavam cheias de dor, deputados da Câmara trabalharam ao longo da noite para infligir o mais forte ataque que a Lava-Jato sofreu ao longo de mais de dois anos de vida”.
Não agrada a mim a ideia de que “homens impiedosos” aproveitaram uma noite de comoção nacional para dar um golpe. O golpe seria dado de qualquer maneira, como já fora tentado em semanas anteriores, e o máximo que se pode dizer é que os deputados não interromperam as votações em sinal de luto pela tragédia com o time da Chapecoense, porque tinham pressa em executar o golpe contra a Operação Lava-Jato.
Descrever os políticos como “impiedosos” coloca os procuradores em contraposição como os “homens piedosos”, e certamente essa não é a disputa que está se desenrolando no país. O que há é um grupo de policiais, procuradores e juízes combatendo a corrupção, cumprindo suas funções públicas, e as instituições democráticas funcionando, apesar da tentativa de utilizá-las para neutralizar esse combate.
Mas não são todos homens de bem de um lado, nem todos maldosos do outro. Sobretudo, as instituições têm que ser preservadas. Esse sentimento de preservação da democracia tem que estar presente nas manifestações de hoje, para até mesmo servir de contraste às violentas manifestações recentes em Brasília.
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