- Folha de S. Paulo
O filósofo alemão Walter Benjamin chama a atenção para o fato de que a mecanização e alienação no processo de trabalho, esta inseparável da primeira, empobreceram a experiência que temos do mundo ― e, mais pobres, temos menos a legar às futuras gerações.
Aceita a avaliação de Benjamin, constata-se um problema estrutural nas sociedades contemporâneas, maior ainda no Brasil: pessoas públicas, do mundo empresarial e político, têm dado mostras reiteradas de desapreço pela ética e, em alguns casos, pela legalidade.
É nesse contexto que se deve medir a estatura de Miguel Arraes, que completaria cem anos nesta quinta (15). Arraes se fez servidor de uma indignação genuína e pessoal diante da injustiça, representada pela pobreza endêmica de seu entorno.
A desesperança que combinava miserabilidade e seca no Ceará de 1932 ensejou um sentimento de mundo que veio a se tornar uma missão de vida e, nessa qualidade, seu fazer político específico.
A ética militante com que combateu sem tréguas a injustiça foi construída a partir da perspectiva concreta dos mais pobres. Água e esgoto, eletrificação rural, iluminação pública, documentação -coisas simples e materiais, porém essenciais ao reconhecimento da dignidade humana.
Ao compreender a pobreza como produto de uma assimetria, originada de relações entre classes bem determinadas, definiu como estratégia o empoderamento popular, que tornou a emancipação a palavra-chave de seu fazer político.
A valorização da cultura popular, os movimentos de alfabetização de adultos e os acordos do campo, uma vez articulados, permitem compartilhar novas expectativas de mundo entre as classes mais carentes, que se tornam assim agentes políticos ativos dos próprios destinos.
Arraes formulou também uma visão de país a partir de sólida leitura geopolítica. Advogou, em consequência, um padrão de desenvolvimento que necessitava de um elemento nacional, especialmente porque não era concebido em benefício apenas dos afluentes mas de um povo em busca de emancipação. Na base desse nacionalismo, ciência, tecnologia e inovação eram prioridades estratégicas.
Não foi acidental, portanto, que Arraes tivesse criado laboratórios de fármacos, farmácias populares e a pasta de Ciência e Tecnologia em Pernambuco. Vão nesse sentido sua escolha de que o PSB participasse do governo Lula, com a gestão do Ministério da Ciência e Tecnologia, e suas emendas parlamentares direcionadas às universidades pernambucanas.
Ao ingressar no PSB em 1990, Arraes intensificou a luz potente do empoderamento popular como estratégia de emancipação, preceito que guarda perfeita harmonia com a noção de que socialismo e liberdade são indissociáveis -o que, em sua leitura sempre prática, veio a significar que a população deve ser o agente mais relevante do fazer político de um partido socialista.
Em uma época em que pessoas públicas raramente são vistas como exemplos a seguir, é um conforto encontrar em Miguel Arraes uma história de vida -marcada pela coerência, firmeza e simplicidade de propósitos- que merece ser transmitida. Seu legado permanece perene no sentido de construir uma civilização em que não falte paz, justiça, igualdade e humanismo.
No panteão desse futuro, já se avista a presença singela de Miguel Arraes de Alencar.
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Carlos Siqueira, advogado, é presidente nacional do PSB (Partido Socialista Brasileiro)
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