- O Estado de S.Paulo
Como explicar, por exemplo, o ressurgimento, em países tão distintos quanto a Índia e os EUA, do nacionalismo?
“Meu caro amigo,
Dê ao povo, especialmente aos trabalhadores, tudo o que for possível. Quando lhe parecer que já deu muito, dê a eles ainda mais. Você verá os resultados. Todos tentarão amedrontá-lo com o espectro de um colapso econômico. Mas tudo isso é mentira. Não há nada mais elástico do que a economia que todos temem tanto porque ninguém a entende.”
Carta de Juan Perón para Carlos Ibañez, Presidente do Chile em 1953.
É claro que há certo exagero na carta de Perón – a política, por exemplo, é consideravelmente mais elástica do que a economia. Mas esse não é o ponto. O trecho da carta de Perón para Ibañez é comumente citado para sublinhar os males do populismo econômico, para concluir que políticas econômicas que desrespeitam restrições financeiras de forma sistemática estão fadadas a fracassar. Ainda que isso seja verdade, sobretudo na experiência latino-americana, a nuance em destaque é ignorada, talvez por ser demasiado inconveniente: todos temem a economia porque ninguém a entende. Se substituirmos economia por política, a frase é ainda mais verdadeira.
Em 1970, Albert O. Hirschman, um dos maiores pensadores contemporâneos – para mim, o maior – escreveu The Search for Paradigms as a Hindrance to Understanding (A Busca de Paradigmas como um Obstáculo à Compreensão). Hirschman, falecido em 2012, era economista, além de um cientista social que transitava entre Ciência Política, Sociologia e mesmo Antropologia. Nesse ensaio para a World Politics ele parte da comparação de dois estudos elaborados por cientistas sociais norte-americanos para tecer uma crítica feroz à tendência de dar respostas rápidas e unificadas para fenômenos sociais complexos – no caso, a Revolução Mexicana e a violência na Colômbia. Mas sua crítica é mais geral. Para Hirschman havia, já em 1970, uma doença que contaminava as ciências sociais, da economia à sociologia, passando pela ciência política. A patologia se apresentava na forma da busca incessante por paradigmas unificados para provar teorias no lugar de compreender a realidade. A realidade, sempre emaranhada e opaca perante a elegância e a clareza das teorias.
Esse ensaio de Hirschman, assim como quase tudo que ele escreveu, é fundamental para os dias de hoje. Da turbulência social na América Latina ao caos das eleições britânicas, à ascensão de Donald Trump, ao ressurgimento do nacionalismo em suas expressões mais abjetas – como a perseguição de Narendra Modi aos muçulmanos na Índia, ou a expressão brutal da nulidade absoluta representada pelo bolsonarismo –, há uma ânsia por responder. Autores celebrados mundialmente escrevem livros e mais livros repletos de respostas. Querem explicar por que as democracias correm perigo? Querem saber se as democracias são estáveis? Querem uma resposta elegante e clara para a turbulência política e socioeconômica que abala o mundo? Pois vá na prateleira digital ou real – o que não faltam são as respostas. Quanto às perguntas, bem, elas não andam em voga. Não falo das perguntas retóricas, aquelas feitas apenas por estilo ou efeito. “Quem poderia imaginar que voltaríamos a exaltar o AI-5?”. “Quem diria que uma menina de 16 anos seria capaz de mobilizar o mundo?”
As perguntas que estão em falta são: como explicar o ressurgimento do nacionalismo em países tão distintos quanto a Índia e os EUA? Por que a América Latina passa por tamanha turbulência agora, sobretudo considerando que desigualdade e reviravoltas externas sempre marcaram a região? Por que pensar que há explicações aprumadas para problemas tão distintos e confusos, babélicos até?
A economia não é tão elástica como diz a carta de Perón e como alguns economistas do presente querem fazer crer. Se fosse, bastava a confiança para crescer, a reforma para investir, os juros historicamente baixos para consumir. As previsões otimistas para o crescimento do Brasil feitas no fim de 2018 deveriam ter se concretizado, fosse a economia um exemplo de elasticidade. Não vale dizer que, “ah, mas são as defasagens”. Na sanha de querer concluir – “la rage de vouloir conclure” – essa é a pior resposta. Que o diga Flaubert. Que o diga Perón. Compreendemos, de fato, muito pouco. Ao contrário de pessimista, esse paradoxo conclusivo é uma oportunidade e um convite para ir além dos memes e da superficialidade. Deixo-o como presente de fim de ano aos leitores.
* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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