quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Ascânio Seleme - Infâmia pública

- O Globo

Não importa qual o limite, o presidente rompe todos

Existe ato mais grave do que o chefe do Poder Executivo divulgar vídeo convocando seus seguidores para ato de protesto contra o Poder Legislativo? Existe, e atende pelo nome de ruptura democrática.

O presidente Jair Bolsonaro passa todos os dias do limite. Não importa qual o limite, ele rompe todos. No começo do seu mandato, ele ultrapassava apenas as fronteiras do bom gosto e do senso comum. Há um ano, no seu primeiro carnaval, o presidente perdeu a linha ao reproduzir em rede social o famoso “golden shower”, uma brincadeira idiota em que um homem urina sobre outro no meio da folia. Também fez gracinha com um homem de traços orientais, sugerindo que ele tinha um pênis pequeno.

Logo o capitão começou a quebrar as barreiras que separam o estado de direito do estado de força. Sentido-se cada vez mais à vontade, aplaudido por puxa-sacos palacianos, ouvindo claques de apoiadores plantadas onde quer que vá, sempre cercado por seguranças, ele fala, ouve urras e risadas e acha que está mandando bem. E assim vai construindo um círculo vicioso onde diz uma bobagem, sua turma repercute com vivas nas redes, e a repercussão volta a ele, que aumenta o tom.

Nesta terça, o tom foi alto demais. Bolsonaro distribuiu um vídeo chamando para um ato no dia 15 de março em apoio a ele e contra o Congresso Nacional. Embora não faça menção ao Legislativo, a convocação é para o mesmo dia em que apoiadores do presidente marcaram manifestações em todo o país em favor do governo e dos militares (como se eles estivessem ameaçados) e contra o Congresso. Os posts convocatórios para o dia 15 dizem coisas como “Os militares aguardam as ordens do povo”, “Fora Maia e Alcolumbre”, ou “”Foda-se” inscrito sobre uma imagem do general Heleno fardado.

O presidente, que jamais poderia aliar-se a uma manifestação contra um poder da República, foi muito além ao incentivar a sua organização e ao entrar agora na corrente de convocação, mesmo que no WhatsApp entre amigos.

O vídeo é ridículo. Diz que Bolsonaro “enfrentou os poderosos (...) e quase morreu por nós”. Usando sempre o “nós”, como se falasse em nome do povo brasileiro, afirma que o presidente combateu a “esquerda corrupta e sanguinária” e que “sofre calúnias e mentiras”. De acordo com o vídeo, de clara inspiração totalitária que trata seu líder como único e infalível, Bolsonaro é “trabalhador, incansável, patriota, cristão, capaz, justo e incorruptível”. Um Kim Jong-un tropical de direita.

É crime atentar contra o Poder Legislativo. Fazer pressão contra ou a favor de projetos em tramitação no Congresso é legítimo e democrático. Esse tipo de ação política é feita de maneira sistemática e continuada. O que não se pode é contrapor o Poder Legislativo a outro poder. Associar as forças armadas ao protesto, como mostram os panfletos digitais da convocação, á ainda mais grave. Sugere que o poder das armas estaria posicionado em favor de um dos lados, o lado de Bolsonaro.

O que está em disputa é o poder constitucional do legislativo de realocar recursos do orçamento. Foi por isso que o general Heleno produziu aquela barbaridade, chamando os parlamentares de chantagistas e mandando um “foda-se” ao Congresso. E a ele associaram-se a direita nacional, a tradicional e os seus novos rebanhos, e agora o presidente da República. O que se verá nas ruas do país do dia 15 de março serão pessoas pregando contra um dos alicerces da democracia. Será uma infâmia pública.

Apenas um dos três poderes da República pode ser suprimido sem que faça falta ou se interrompa o processo democrático. É o poder Executivo, que pode ser assumido pelo legislativo no regime parlamentarista. Mesmo assim, a mudança de regime só pode ocorrer como resultado de um consenso político. Já os poderes Legislativo e Judiciário não podem ser suspensos jamais. O Congresso e o Supremo eventualmente decidem contra a vontade da maioria e mesmo assim são imprescindíveis. Eles podem até mesmo errar, mas suas virtudes serão sempre muito maiores do que seus erros.

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