domingo, 5 de dezembro de 2021

Elio Gaspari - O mundo encantado de Sergio Moro

O Globo / Folha de S. Paulo

Em ritmo de campanha, o ex-juiz e ex-ministro não conta tudo em seu livro recém-lançado, mas solta insinuações e fala muito bem de si ao relembrar passagens com Bolsonaro

Sergio Moro está em campanha e tomou uma rara iniciativa: publicou um livro escrito por ele, explicando-se e apresentando-se. O epílogo diz tudo. Seu título é “Precisamos de você” e a última frase é um pedido de ajuda: “A luta contra o sistema de corrupção nunca poderá prescindir de bons combatentes, entre eles você.”

Moro fala muito bem de si. Saem mal de seu livro o Supremo (quando o declara parcial), o Congresso (quando altera suas propostas) e Jair Bolsonaro (quando fritou-o). A Sergio Moro ele concede um mecanismo que condena, a “presunção de inocência à brasileira”: Ela “é apenas uma construção interpretativa que visa garantir a impunidade de crimes cometidos pela classe dirigente”. Todo mundo é culpado de tudo, menos Sergio Moro.

Ele justifica suas sentenças e defende com argumentos que parecem insuficientes o fato de ter patrocinado a exposição da interceptação telefônica de uma conversa de Lula com a então presidente Dilma Rousseff quando o prazo legal da escuta já tinha caducado. Não foi ele quem autorizou a publicidade. Vá lá, mas quem foi?

O juiz que simbolizou a Lava-Jato com seus méritos históricos, conclui que a operação “foi vítima de suas virtudes, e não de seus erros”. Moro trata do episódio que pode ter sido o maior erro do campeão da Lava-Jato: sua ida para o Ministério de Jair Bolsonaro.

Referindo-se à retórica de Bolsonaro durante a campanha de 2018, quando era um magistrado, ele diz:

“Não imaginei, nem por um minuto, que aquelas declarações, muitas delas completamente absurdas, reverberassem em políticas públicas concretas. Havia uma distância entre discurso e gesto que me dava algum conforto.”

Tudo bem, mas como Bolsonaro não mudou, o juiz que aceitou, entre o primeiro e o segundo turno, o gesto do convite para o Ministério, acreditava que o capitão estava enganando a plateia. O tempo mostrou que o juiz enganou-se achando que enganava-se o eleitorado.

Relembrando o aparecimento do rolo das rachadinhas, na primeira semana de dezembro de 2018, Moro diz:

“Àquela altura eu já havia deixado a magistratura e estava na equipe de transição do governo. Não havia como voltar atrás.” Haver, havia, ficou porque quis.

Moro menciona em seu livro mais filmes e séries de TV (oito) do que marcos da jurisprudência. Em nenhum deles o herói se deixou fritar.

Tendo entrado no governo de um presidente que dizia absurdos durante a campanha, perdeu a confiança nele quando começaram a trabalhar juntos: “Eu não poderia confiar nele”, ou “não havia como confiar mais no presidente”. Moro registra que Bolsonaro também mostrava não confiar no seu ministro da Justiça. Essa desconfiança seria maligna, enquanto a de Moro em Bolsonaro, benigna. Jogo jogado, afinal, o livro é dele. Lê-lo pode ser um pouco agreste, mas ajudará a acompanhá-lo na campanha do ano que vem. Ele não conta tudo, mas solta insinuações e avisa:

“Quem sabe algum dia eu escreva um relato mais abrangente e detalhado, abordando fatos sobre os quais fica muito difícil me posicionar no momento.”

Tomara que isso aconteça logo. Falta contar com fatos porque Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal.

Bolsonaro é campeão

Jair Bolsonaro conseguiu mais um feito inédito. Em três anos de governo, dois de seus ministros puseram na rua livros denunciando sua conduta. Primeiro veio Luiz Henrique Mandetta com seu “Um Paciente Chamado Brasil”. Nele, o ex-ministro da Saúde denunciou o negativismo obsessivo do presidente diante de uma epidemia que já matou mais de 600 mil brasileiros. Em seguida, veio Moro, a maior estrela de seu ministério nos dias da posse, mostrando que seu compromisso com o combate à corrupção era parolagem.

A favor, nenhum. Só os delírios românticos de Paulo Guedes.

A força do governismo

É compreensível que a oposição torça por derrotas da bancada de Bolsonaro, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, mas torcer é uma coisa e difundir falsas expectativas é outra. Nas últimas semanas, aprovando emendas constitucionais e a indicação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal, o governo mostrou sua musculatura parlamentar.

A cada expectativa frustrada correspondeu a reclamação de que aconteceram traições. Pena, tudo teria ficado mais claro se torcida fosse chamada de torcida.

Madame Natasha

Madame Natasha coleciona as falas do ministro Paulo Guedes e as guarda na prateleira do realismo fantástico. Como a senhora zela pelo idioma, resolveu conceder-lhe uma de suas bolsas de estudo pela justificativa que deu para o entesouramento de 9,55 milhões de dólares num paraíso fiscal do Caribe:

“Se você tiver uma ação no nome da pessoa física e falecer, 46% é expropriado pelo governo americano (...). Então, se você usar offshore, você pode fazer esse investimento. Se você morrer, em vez de ir para o governo americano, vai para a sucessão”.

Entendido. O doutor não quer pagar imposto de transmissão quando passar desta para outra melhor. O que Natasha estranhou é que, sendo ministro da Economia, diga que o cidadão americano é “expropriado” em 46%. Essa é a palavra que a turma dos assaltos a bancos dos anos 1970 usava para designar suas ações. A Receita Federal de Pindorama expropria?

Guedes tem uma estranha relação com o capitalismo americano. Quando lhe convém, louva-o. Quando ele tenta cobrar-lhe impostos, abriga-se num paraíso caribenho.

A senhora viu o doutor defendendo a venda de bens do patrimônio da Viúva com sua retórica infeliz:

“Tem um negócio chamado fundo de erradicação da pobreza, sem dinheiro, sem gasolina. Enche o tanque do fundo, vende alguns ativos aqui e enche o tanque do fundo.”

Por simples, a transação parece boa, mas Noel Rosa já cuidou dela na marcha “Palpite”, de 1931:

— Ser palpiteiro neste mundo é a tua sina. Vendeste o carro pra comprar gasolina.

A batalha dos planos de saúde

Em 2019 a guilda das operadoras de saúde privada patrocinou um projeto de revisão da lei de 1998 que regula esse mercado. O projeto ficava a sete chaves. Pretendia desossar a regulação e, acima de tudo, abrir caminho para planos que custam pouco e servem para quase nada. O documento vazou e ficou sem pai nem mãe, mas suas ideias não morreram de todo.

Agora circula em Brasília uma minuta de projeto do deputado Hiran Gonçalves, com quase uma centena de mudanças na lei. Enquanto a manobra das guildas de 2019 vivia no escurinho de São Paulo e Brasília, o texto do deputado tem autor e é apenas uma minuta, tipo “tema-para-conversa”. Vista no Ministério da Saúde, levantou algumas objeções.

Tratar de um assunto desse tipo no meio de uma pandemia e das maluquices praticadas em planos que empurravam a cloroquina é caminho certo para envenenar um debate que as guildas evitam.

Não é justo para o mercado que a freguesia só saiba das malfeitorias de operadores quando eles fazem delações premiadas ou são atropelados por escândalos nos quais morre gente.

Como ensinou o juiz Brandeis: a luz do sol é o melhor detergente.

Um comentário:

Carreira Neles! disse...

Quem é Sérgio Moro? Um ex-juíz que não sabe falar o porutuguês.
Outro fato é dizer que condenou o réu por ato de ofício indeterminado.
Realmente ainda não tinha visto esse tipo de condenação, imagina essa pessoa se tornando presidente da república....Deus nos proteja!