O Globo
Nunca sabemos se um sonho intenso e um raio
vívido vêm antes ou depois do amor eterno seja símbolo
Aproveitando este 7 de Setembro atípico,
flopado — em que o governo pareceu pouco interessado em reaver os símbolos
nacionais (indevidamente apropriados pela gestão anterior, com joias, relógios
e valores conservadores) —, talvez fosse hora de aposentar o velho “Ouviram do
Ipiranga” e assumir o novo hino.
Sim, gostamos de inflar o peito e murchar a barriga para, de pé, nos esgoelar em hipérbatos e proparoxítonas. Num brado retumbante, desafiamos mais que a própria morte: vamos de lábaros impávidos a flâmulas garridas, de fúlgidos penhores a límpidas clavas, sem atinar muito bem com o que estamos cantando.
Nunca sabemos se um sonho intenso e um raio
vívido vêm antes ou depois do amor eterno seja símbolo (é de bom tom esperar
que os outros decidam, então seguir o fluxo). Peça que expliquem essa letra —
ou, pelo menos, a desentortem — e verá quantos fugirão à luta.
Tudo muda, entretanto, com o hino informal.
Ali não há esplêndido colosso ou estrelado florão —apenas uma intensa, plácida
e profunda declaração de amor: Quando
eu digo que deixei de te amar/É porque eu te amo. /Quando eu digo que não quero
mais você/É porque eu te quero.
Nada de contorcionismos sintáticos. É como
se a Semana de 22 chegasse, finalmente, a 2023, e permitisse ao brasileiro
dizer ao Brasil, em ordem direta: Eu tenho
medo de te dar meu coração/E confessar que eu estou em suas mãos/Mas não posso
imaginar o que vai ser de mim/Se eu te perder um dia.
Ali assumimos nossa bipolaridade política
diante desta pátria-mãe nada gentil: Eu me
afasto e me defendo de você/Mas depois me entrego. /Faço tipo, falo coisas que
eu não sou/Mas depois eu nego.
Imagine o Maracanã lotado, cantando em
uníssono, num jogo da seleção: Mas a
verdade é que eu sou louco por você/E tenho medo de pensar em te perder. /Eu
preciso aceitar que não dá mais/Pra separar as nossas vidas.
Ou ministros do STF, em solenidades
oficiais, olhando nos olhos do presidente: E nessa loucura de dizer que não te quero/Vou negando as
aparências/Disfarçando as evidências/Mas pra que viver fingindo/Se eu não posso
enganar meu coração? /Eu sei que te amo.
Ninguém erraria a letra. Lulistas e
bolsonaristas se irmanariam para entoar a seus semideuses: Eu entrego a minha vida/Pra você fazer o
que quiser de mim.
O novo hino já vem sendo tocado,
indistintamente, em churrascos, serestas, festivais, chás de revelação. O
tecladista do Bruno Mars não resistiu. O embaixador da Coreia do Sul tampouco.
Nada contra a bela melodia de Francisco
Manuel da Silva ou os tortuosos versos de Joaquim Osório Duque-Estrada. Mas
feche os olhos e fantasie o auriverde pendão tremulando aos acordes de José
Augusto e Paulo Sérgio Valle, enquanto pensamos na bossa nova, no Pasquim, na
redemocratização, na seleção de 70, no Grande Sertão, no Plano Real, nas
colunas do Palácio da Alvorada, em Dom Casmurro, em Dias Gomes, em Joãosinho
Trinta, em Ayrton Senna, e declaramos ao Brasil: Diz que é verdade, que tem saudade/Que ainda
você pensa muito em mim. /Diz que é verdade, que tem saudade/Que ainda você
quer viver pra mim.
2 comentários:
Hahahahah
Sensacional !
O colunista gosta de palavras, gosta de usá-las e de brincar com elas. Ele joga bem com elas, mas acho que tem pouco a dizer com elas. Muita aparência e pouco conteúdo, na minha opinião.
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