segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Antara Haldar* - Adeus aos economistas de Chicago

Valor Econômico

Os modelos de longa data que pressupõem um comportamento racional que maximiza o bem-estar permanecem totalmente entrincheirados na teoria

Setembro de 2023 marca dois acontecimentos importantes na história da economia - o 50º aniversário do evento que levou à ascensão da “Escola Econômica de Chicago” e o 15º aniversário daquele que precipitou sua queda.

Meio século atrás, os “Garotos de Chicago” embarcaram num experimento no Chile pós-golpe de Augusto Pinochet que se tornaria a estrutura de política econômica dominante do nosso tempo, introduzindo uma série de medidas radicais inspiradas pelas ideias de Milton Friedman e do resto da Escola de Chicago.

Essas ideias - nascidas de uma fé absoluta no mercado e de uma suspeita igualmente absoluta do governo - viriam a dominar a disciplina da economia e, mais importante, a definição de políticas econômicas pelos próximos 35 anos. Foi só com o colapso do Lehman Brothers em setembro de 2008, seguido logo depois pela crise financeira global, que a ascensão da Escola de Chicago terminou.

A questão hoje, 15 anos depois, é se essa ortodoxia econômica de longa data está gravemente ferida ou se seus defensores estão só lambendo suas feridas e esperando seu momento. A resposta vai depender de se desenvolvemos um entendimento adequado dos fatores que levaram à crise de 2008, e dos desafios que vêm atormentando muitas economias desde então.

Para Friedman, nenhuma outra patologia econômica merecia mais preocupacão que a inflação, que ele via como uma espécie de febre macroeconômica. O remédio, que remetia à sabedoria médica tradicional, era curá-la à base de fome ou sangramento - nesse caso, reduzindo o fornecimento de dinheiro e deixando a economia suar a doença. Em comparação, seu arqui-inimigo, John Maynard Keynes, se preocupava mais com os fatores que faziam uma economia ter um desempenho abaixo de seu potencial. Esses casos lembravam mais o resfriado tradicional, em que os pacientes precisam ser alimentados e receber líquidos em abundância, nesse caso por meio de gasto público.

As prescrições de políticas econômicas mais limitadas dos economistas comportamentais foram aceitas a contragosto na teoria, com todos reconhecendo agora que as ações dos indivíduos e das empresas com frequência se desviam da racionalidade econômica

Após a estagflação da década de 1970, que representou uma crise para o keynesianismo, a receita de Friedman de disciplinar os gastos do governo e liberar os mercados por meio da desregulamentação e da liberalização do comércio foi adotada em grande escala. Ela foi implementada não só no Chile, mas também nos Estados Unidos, na gestão do presidente Ronald Reagan, e no Reino Unido, sob o comando da primeira-ministra Margaret Thatcher, na década de 1980.

Além disso, as mesmas políticas também foram introduzidas - há quem diga impostas - globalmente por meio do Consenso de Washington: um pacote de medidas de livre mercado empurradas para os países em desenvolvimento que buscassem ajuda do Fundo Monetário Internacional; à Rússia pós-Guerra Fria (por meio da “terapia de choque”); e ao Reino Unido e aos países do sul da Europa durante os anos de austeridade pós-2008. Em cada caso, o tratamento preferido de Friedman - deixar a economia suar sua febre, em vez de suprimi-la com assistência governamental - foi meticulosamente administrado.

Mas e se muitos dos maiores problemas que a economia global enfrentava fossem fruto de um erro de diagnóstico? E se, como a economia comportamental argumenta, eles forem mais psicológicos do que materiais?

Enquanto a versão de Friedman sobre mercados autoequilibrados envolvia agentes econômicos cujas características eram em grande parte implícitas, o modelo das expectativas racionais de seu colega da Escola de Chicago, Robert Lucas, imputava características cognitivas concretas a esses agentes. E é a abordagem de Lucas que tem dominado o pensamento econômico desde a década de 1970. O modelo de Lucas torna explícita a ideia de que todos nós estamos constantemente processando grandes volumes de informações para maximizar nosso próprio bem-estar em qualquer contexto econômico.

No entanto, a economia comportamental - incorporando percepções mais recentes da psicologia, em particular o trabalho de Daniel Kahneman e Amos Tversky sobre os atalhos mentais, heurísticas e vieses que moldam nosso pensamento - vem mostrando que o “ator racional” é uma quimera. De modo semelhante, os estudos de Cass Sunstein e Richard Thaler estabeleceram que as pessoas não demonstram racionalidade num sentido abstrato. Em vez disso, nós tomamos decisões com base na “racionalidade demarcada” (informações limitadas), na “força de vontade demarcada” (saber que não é bem isso, mas fazer algo mesmo assim) e, como venho observando, no interesse próprio demarcado (demonstrar preocupação com mais do que o próprio bem-estar material).

As prescrições de políticas econômicas mais limitadas dos economistas comportamentais foram aceitas a contragosto na teoria microeconômica, com todos reconhecendo agora que as ações dos indivíduos e das empresas com frequência se desviam da racionalidade econômica. No entanto, como eu já argumentei anteriormente, a macroeconomia permaneceu impermeável às percepções comportamentais, descartando as descobertas desse campo como desvios peculiares da racionalidade que, no final das contas, se compensarão mutuamente e vão embora junto com a sujeira da roupa. Os modelos de longa data que pressupõem um comportamento racional que maximiza o bem-estar, portanto, permanecem totalmente entrincheirados.

No entanto, com a ascensão da política populista, os desvios da racionalidade rigorosa na formulação de políticas têm se tornado mais frequentes e mais dramáticos. Como resultado, há cada vez mais evidências empíricas em todo o mundo ressaltando o fato de que os agentes econômicos têm mais probabilidade de se parecer com “Joe, o encanador trumpista” do que com a proverbial “dona de casa da Suábia” citada pela ex-chanceler alemã Angela Merkel como a frugal e hiperracional garota-propaganda da austeridade.

Onde isso deixa a ortodoxia econômica dos últimos 50 anos? O prognóstico não é bom. Com um pé já na cova, os expoentes restantes da Escola de Chicago fariam muito bem de acertar as contas com seu passado chileno sangrento. Se as principais hipóteses do neoliberalismo não têm equivalência com os resultados do mundo real, os economistas têm o dever com eles mesmos - e acima de tudo com o público - de reconhecer sua verdadeira natureza. (Tradução de Fabrício Calado Moreira)

*Antara Haldar, professora associada de estudos jurídicos empíricos na Universidade de Cambridge, é membro visitante do corpo docente da Universidade de Harvard. Direitos Autorais: Project Syndicate, 2023.

3 comentários:

Mais um amador disse...

Sugiro a leitura do livro " Darwin vai às compras - Sexo, evolução e consumo ", de Geoffrey Miller

Daniel disse...

Texto magnífico! Parabéns à autora e ao blog por divulgá-lo.

ADEMAR AMANCIO disse...

Lendo e tentando aprender.