O Globo
Conselho de Segurança da ONU tornou-se
anacrônico
O Direito humanitário internacional agoniza,
e o multilateralismo fenece, enquanto ao menos 5 mil pessoas, a maioria civis,
já perderam a vida no mais recente conflito bélico mundial, a contraofensiva
de Israel ao
terror do Hamas.
São ambos — o Direito e o multilateralismo — reféns de um modelo, daqui a pouco
centenário, de negociação global em que um punhado de países manda muito, e um
monte apita quase nada. O poder de veto torna as votações de mentirinha.
Aconteceu mais uma vez nesta semana, quando a oposição solitária dos Estados
Unidos escanteou no Conselho de Segurança da ONU uma
resolução articulada pelo Brasil, que teve, na prática, sinal verde de 14 dos
15 membros.
O ataque terrorista em Israel, que vitimou mais de 1.400 pessoas, incluindo três brasileiros, e fez quase duas centenas de reféns, em 7 de outubro, se deu dias depois de o Brasil assumir por um mês a presidência do conselho. A primeira providência do Itamaraty foi convocar uma reunião de emergência, no dia seguinte à barbárie. O encontro, tão breve quanto esvaziado, não resultou sequer em nota conjunta dos países. Nem houve consenso sobre condenação ao Hamas. Sandra Coutinho, correspondente da TV Globo em Nova York, notou que o governo Joe Biden, democrata, se fez representar pelo embaixador Robert Wood, quinto na hierarquia da missão americana na ONU, liderada por Linda Thomas-Greenfield. Sinal de falta de apreço ao colegiado e de alinhamento total — e declarado — à posição israelense.
Foram necessárias outras duas reuniões, até a
manhã quase histórica de quarta, 18. Na sexta, 13, também terminara sem acordo
a sessão presidida pelo chanceler brasileiro, Mauro
Vieira, que substituiu o chefe da missão, o experiente embaixador Sérgio
Danese. Na segunda, 16, foi a vez de o conselho rejeitar a proposta de
cessar-fogo de uma Rússia ainda em guerra pela invasão da Ucrânia. A resolução
recebeu somente cinco votos a favor (China, Emirados Árabes Unidos, Gabão,
Moçambique e a própria Rússia), quatro contra (Estados Unidos, França, Japão e
Reino Unido) e seis abstenções (Albânia, Brasil, Equador, Gana, Malta e Suíça).
Por causa da recorrente falta de acordo, a
construção da proposta do Brasil foi considerada tão significativa. O país já
tinha empreendido uma bem-sucedida operação de repatriação de mais de mil
brasileiros, boa parte turistas, em território israelense. O Itamaraty ainda
organizou a saída de duas dezenas de famílias para Rafah, nos arredores da
passagem de Gaza para
o Egito. Diante do agravamento do conflito, com Israel determinando o
deslocamento do Norte para o Sul da Faixa de Gaza de mais de 1 milhão de
palestinos e a crise humanitária se agudizando, o conselho apreciaria o texto
na terça à noite.
No meio da tarde, horas antes da sessão, a
reunião foi remarcada. No “Estúdio i”, na GloboNews, informei que os Estados
Unidos tentavam postergar a votação em 48 horas, mas o Brasil só concordava com
adiamento de um dia. Aos americanos não interessava aprovar uma resolução no
Conselho de Segurança antes de o presidente retornar da viagem ao Oriente
Médio. Pouco antes do embarque de Biden, a explosão que deixou centenas de
mortos num hospital de Gaza tornou mais urgente a sessão em Nova York.
Os palestinos e o mundo árabe acusam Israel;
o governo de Benjamin
Netanyahu, a Jihad Islâmica. Egito e Jordânia cancelaram o encontro com
Biden, que só foi a Israel. Representantes da Liga Árabe na ONU fizeram
pronunciamentos duros contra a morte de civis às centenas em Gaza. A
temperatura subiu a ponto de a Rússia solicitar a antecipação da reunião do
colegiado em Nova York.
Foi sob o impacto das estimadas 500 mortes no
hospital, repudiadas por organizações como OMS, Médicos Sem Fronteiras, que o
Conselho de Segurança votou, anteontem de manhã, a proposta brasileira. A
resolução classificava o Hamas como grupo terrorista, estabelecia pausa
humanitária no conflito, criava corredor de assistência aos civis, pedia a
libertação dos reféns israelenses pelo Hamas.
Onze países, incluindo dois membros
permanentes do conselho (China e França) votaram com o Brasil. Reino Unido e
Rússia se abstiveram. Como tinham poder de veto e não o exerceram, abriram
caminho para o que seria o primeiro entendimento entre potências globais sobre
a tensão Israel-Palestina em sete anos. Mas os Estados Unidos usaram o poder de
veto, herança do pós-Segunda Guerra Mundial aos cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança.
A Casa Branca ainda tentou responsabilizar o
Brasil pela votação da proposta antes de Biden retornar de Israel. A versão não
convence, porque a sessão foi precipitada pela tragédia no hospital em Gaza.
Ainda que o Brasil ignorasse o agravamento do conflito e concordasse com o
adiamento desejado pelos Estados Unidos, a resolução seria apreciada.
O governo americano não tem como se livrar da
responsabilidade de ter sido o único de 15 países a se opor à única faísca de
humanidade possível até aqui, na “mais complexa situação do tabuleiro
diplomático mundial”, nas palavras de um embaixador. Não é por acaso que tantos
países equidistantes da queda de braço permanente entre as potências, caso do
Brasil, insistem em cobrar novos membros, novas regras para o anacrônico
Conselho de Segurança da ONU.
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