O Estado de S. Paulo
Exportando 40 tipos de minérios e possuindo uma agricultura diversificada, não conhecer a África do Sul é uma clara indicação de nossa obtusidade
No dia 29 do mês passado, a África do Sul
realizou suas eleições gerais. Tive o privilégio de visitar o país cinco vezes,
a primeira na tormentosa década de 1990. Logo tomei um táxi e perguntei ao
motorista: “Como o senhor está vendo o quadro político?”. Ele me respondeu na
lata: “É fazer a eleição ou encarar a guerra civil, que implicará a destruição
da melhor infraestrutura deste continente”.
Ao contrário das favelas brasileiras, situadas em morros, o Soweto é plano. É uma infinidade de pequenos casebres quadrados ou retangulares, todos cobertos com folha de zinco. Caminhei uns 300 metros e puxei conversa com uma família que vendia frutas numa caminhonete. Comi um abacaxi, tirei fotos com eles, almocei num modestíssimo botequim e segui em frente.
Praticamente nada sabendo a respeito do país,
ouvira dizer que é um dos países mais lindos e desenvolvidos do continente.
Exportando 40 tipos de minérios, inclusive urânio e titânio, possuindo uma
agricultura diversificada, ótimas uvas, uma culinária esplêndida e, não menos
importante, uma classe política e uma intelectualidade que facilmente ombreiam
com as nossas. Não conhecê-lo é uma clara indicação de nossa obtusidade.
O país se formou no século 16, no ciclo da
busca do caminho marítimo para as Índias – a busca das especiarias, na qual os
portugueses também tiveram papel relevante –, quando a Companhia Holandesa das
Índias Orientais estabeleceu um pequeno entreposto na região onde hoje se situa
a belíssima Cape Town (Cidade do Cabo). Os ocupantes eram poucos e tinham
estritas instruções de apenas comerciar com os negros nativos, abstendo-se de
qualquer convívio com eles. Com o tempo, os afrikaners (antes
conhecidos como boers) multiplicaram-se, ignoraram instruções de seus
empregadores e, pressionados pelos ingleses, migraram para o norte e para o
leste.
Em meados do século 18, ao tomar conhecimento
da riqueza mineral do país, os ingleses seguiram a mesma trilha. Incapazes de
bater militarmente os culturalmente inferiores afrikaners, optaram pelo
enriquecimento em vez do domínio político e da agricultura. Escusado frisar que
daquele momento até o fim do século 20 o país se viu envolto em inumeráveis
conflitos, com dezenas de milhares de mortos, e que atualmente contam dez
idiomas oficiais mesmo entre os ingleses e os afrikaners, tendo estes
adotado o afrikaans, uma derivação do holandês, também elevado à condição
de língua oficial.
Medidas graduais de segregação (por exemplo,
o sexo e posteriormente o casamento inter-racial) foram sendo impostas às
tribos negras: um racismo de todos contra todos. Cada vez mais violento, esse
racismo tornou-se lei em todas as áreas da vida em sociedade, no
entretenimento, na educação, nos esportes, na religião, na política (com o voto
negado aos negros) desde 1924, concomitantemente com o banimento de toda a
oposição. Ao findar o século 20, menos de 10% dos brancos já haviam se
apropriado de 90% das terras agricultáveis, cabendo o resto à maioria negra: 70
milhões de indivíduos. Mas a minoria branca teve de enfrentar a resistência de
todo um arco-íris de grupos organizados; a luta inicialmente pacífica,
inspirada em Mahatma Gandhi, na qual predominava o partido Congresso Nacional
Africano (ANC), fundado em 1912 e com a liderança inconteste de Nelson Mandela.
Recolhido em 1962 ao presídio da Ilha Robben, 6 milhas ao sul do continente,
Mandela foi parcialmente liberado após 27 anos e em definitivo em 1994, quando
a “revolução negociada” ganhou momentum.
Não que tenha grande importância, mas cabe
mencionar que, em 1948, no Brasil, um brando projeto do senador Afonso Arinos
caracterizou o racismo como “contravenção penal”. No mesmo ano, na África do
Sul, por uma diferença de oito votos, o primeiro-ministro Daniel Malan
promulgou uma lei generalizada de segregação e tomou as providências
repressivas correspondentes à escala de tal violência. De 1990 a 1994,
configurou-se a “revolução negociada” entre o governo e todas as entidades de
oposição. Negociada e pacífica, anunciada num discurso de 45 minutos pelo
primeiro-ministro Frederik de Klerk, estendeu o direito de voto a toda a
população adulta, no quadro de uma democracia racial, merecendo ser avaliada
por larga margem como a mais espetacular das transições de regime do século 20.
A poucos dias da eleição, um problema grave
persistia. Mandela fazia questão da participação do partido Inkatha, sediado na
costa sul do Oceano Índico, base do povo zulu, e liderado pelo chefe tribal
Mangosuthu Buthelezi, inimigo figadal de Mandela. Após agonizantes tentativas,
Buthelezi concordou, mas o nome do Inkatha não constava da lista. Um juiz
autorizou a realização do pleito, com a condição de que a sigla Inkatha
aparecesse em todos os róis de votação. Foi o que se fez: em três dias e três
noites, etiquetas do Inkatha afixadas às 81 milhões de cédulas já impressas.
Um comentário:
África do Sul e Mandela.
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