CartaCapital
Em um Congresso disfuncional, a bancada
ruralista organiza os retrocessos sociais, econômicos e ambientais
O presidente Lula vai lançar nos próximos
dias mais um pacote de crédito público com juros camaradas para financiar a
produção agropecuária. O novo Plano Safra terá
um volume recorde de dinheiro, segundo um integrante da equipe econômica, como
ocorreu nos anos anteriores – 435 bilhões de reais em 2023 e 476 bilhões em
2024. Fala-se em ao menos 500 bilhões de reais. Os produtores pedem mais: 600
bilhões. O campo desfruta ainda de isenções fiscais anuais de 158 bilhões e de
um Imposto Territorial Rural, equivalente ao IPTU, feito de pai para filho, e
nesses dois casos por obra de vários governos, não só do atual. “Nós
patrocinamos o agro brasileiro”, afirmou o ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, em 11 de junho no Congresso. Apesar de esbaldar-se em benesses
estatais, o agronegócio é a maior força de oposição ao governo, além de esfolar
a população com os preços altos dos alimentos. E tem como uma de suas principais
armas nos últimos tempos um escritório de lobby que atua nas sombras em
Brasília.
A bancada ruralista, cuja cúpula dirigente de 28 congressistas tem dez filiados ao PL de Jair Bolsonaro, esteve na linha de frente da derrubada, na quarta-feira 26, de um decreto de Lula que mudava o Imposto sobre Operações Financeiras, o IOF. Derrota histórica do governo. Desde 1992, o Legislativo não jogava no lixo um decreto presidencial. A versão original do texto era de 22 de maio e uma outra havia ganhado as ruas em 11 de junho, após Haddad negociar com os comandantes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre. Nessa negociação, o ministro havia colocado na mesa a taxação em 5% de um tipo de papel que o sistema financeiro negocia para reverter em recursos ao setor rural, as LCAs. A taxação consta de uma medida provisória baixada recentemente por Lula e que terá de ser votada por deputados e senadores. Segundo Haddad, a conta do ajuste fiscal tem de ser paga pelos “moradores de cobertura”.
A Frente Parlamentar da Agropecuária, nome
oficial da bancada ruralista, peitou o governo com diversas notas públicas
tanto após o decreto de maio quanto depois das negociações daquela de junho e
da MP. Em uma delas, defendia aprovar uma proposta do líder da oposição na
Câmara, o deputado Luciano Zucco, do PL gaúcho, para cassar o decreto lulista
do IOF. Foi essa proposta que o Congresso aprovou na quarta 26. Em outra nota,
a “Bancada do Boi” dizia que as LCAs são fonte de 43% do crédito privado ao
agronegócio e que as isenções de 158 bilhões resultam das renúncias no comércio
de insumos agrícolas e de itens da cesta básica. Mudar o quadro encareceria a
comida. “Quem vai pagar a conta não é ‘o andar de cima’, mas sim o cidadão”,
segundo o texto. Claro: os próprios produtores rurais, que empurram para o
preço qualquer custo, a fim de manter os lucros gordos, jogariam a conta para a
população, da mesma maneira que cobram no Brasil preços internacionalizados dos
alimentos.
“Nunca vi algo tão organizado como essa
bancada ruralista de hoje”, comentou um colaborador do governo no Congresso na
véspera de o Senado aprovar, em 21 de maio, uma lei para relaxar o
licenciamento ambiental, ou seja, para facilitar a devastação de áreas verdes.
O projeto depende da palavra final dos deputados. Em 2023, destacava o
colaborador, o Congresso havia aprovado uma lei para ampliar o uso de
agrotóxicos. O Brasil é campeão mundial na utilização de fertilizantes,
conforme dados de 2021 divulgados em 2024 pela FAO, a agência da ONU para
alimentação e agricultura. Mais do que Estados Unidos e China juntos.
O Instituto Pensar Agropecuária tornou-se o
mais influente grupo lobista em Brasília
O poder e a organização da Bancada do Boi que
espantam o colaborador governista não seriam os mesmos não fosse uma
organização lobista instalada em Brasília e financiada com dinheiro de
entidades patronais do agronegócio. Chama-se Instituto Pensar Agropecuária, o
IPA. Sua missão tem sido engrossar o coro a favor de medidas econômicas
liberais e de corte de gastos federais, tesourada cujas consequências sempre
recaem no lombo das classes populares atendidas por políticas públicas. Isso,
repita-se, apesar de a agropecuária esbaldar-se em benesses estatais.
O IPA foi criado em 2011, conforme registros
da Receita Federal. Existe de fato desde 2008, ano de fundação formal da Frente
Parlamentar da Agropecuária, a FPA. Possui 58 filiados, conforme seu site. A
direção compõe-se de 11 integrantes, distribuídos entre os conselhos de
administração e fiscal. Os postos são divididos entre os vários segmentos do
agronegócio, de modo a acomodar o máximo de interesses. A atual presidente,
Tania Zanella, empossada em fevereiro, é da Organização das Cooperativas
Brasileiras. Seus colegas de cúpula são os produtores de soja, de cana, de boi
zebu, de milho e até da Fiesp, entre outros.
O instituto se sustenta com verba dos
associados. Em 2019, quando tinha 48 filiados, arrecadava cerca de 14 mil reais
de cada, cerca de 600 mil por mês, segundo um antropólogo que à época estudou o
IPA, Caio Pompeia, pesquisador da USP do Programa de Pós-Doutorado em
Antropologia Social. Para Pompeia, o instituto é hoje “o grupo de lobby mais
influente” do País. Caso o valor individual das contribuições apurado por ele
em 2019 siga igual, a arrecadação mensal do IPA seria de cerca de 800 mil
reais. CartaCapital perguntou ao instituto sobre associados e contribuições.
Sem resposta. O dinheiro dos patrocinadores banca um corpo técnico encarregado
de produzir dados, informações e discurso político para a bancada ruralista,
explicação para a rapidez com que a FPA divulga notas contra o governo. É
constante a presença desses técnicos em reuniões no Congresso e no Ministério
da Agricultura para discutir medidas e leis no forno.
A sede do IPA em Brasília é a mesma da
bancada ruralista, uma casa espaçosa no Lago Sul. Não por coincidência. É tudo
uma coisa só. Às segundas-feiras, o corpo técnico do IPA reúne-se para
identificar e discutir os assuntos de interesse do agronegócio que estarão na
pauta dos três poderes em Brasília durante a semana. No dia seguinte, a bancada
ruralista reúne-se no mesmo local para tomar pé da situação e, também, colocar
temas na mesa. Em seguida, a turma almoça no casarão. As faces empresarial e
parlamentar da “engrenagem que opera no Lago Sul”, anotou Pompeia em um artigo
de 2022 baseado nos estudos de 2019, “se mostram interligadas de tal forma que
o aprofundamento, no instituto, da convergência de elites privadas do campo
implicou, com o auxílio dos agentes técnicos, um conjunto de inflexões no
próprio centro de comando da FPA”.
Essas “inflexões” se deram ao longo da década
passada. Em suma, a estrutura organizacional da bancada ruralista, com vários
diretores e comissões temáticas, passaram a espelhar aquela existente no
instituto lobista. A bancada rejuvenesceu, com a troca de líderes mais antigos
por outros mais jovens. E estes não necessariamente são produtores rurais.
Todos os dirigentes da cúpula da FPA em 2011 tinham bens ligados ao
agronegócio. Em 2019, só 43%. “O instituto age de forma planejada para atrair e
treinar congressistas jovens dos meios urbanos, com a finalidade de ampliar a
influência tanto no próprio Congresso quanto sobre segmentos populacionais que
tendem a ver criticamente as elites dos sistemas alimentares”, diz Pompeia no
texto de 2022.
O antropólogo constatou uma mudança
importante no próprio IPA. A partir de 2017, a agropecuária pura, entendida
como aquelas atividades realizadas atrás das porteiras das fazendas, perdeu a
hegemonia política na entidade. O poder passa à agroindústria e ao
agrosserviço. São três as explicações, segundo Pompeia. A verticalização das
cadeias produtivas alimentares, algo visto pelo mundo. Os custos de manter o
escritório de lobby. E a própria eficiência da organização lobista. É como se o
setor rural e seus soldados no Congresso estivessem agora a serviço da
agroindústria e do agrosserviço. Estes podem, assim, trabalhar nos bastidores a
favor de causas impopulares, como relaxar leis ambientais, enquanto quem dá a
cara e apanha em praça pública são os agropecuaristas puro-sangue.
Apesar dos inúmeros benefícios, a bancada
ruralista se faz de vítima e reclama da perseguição ao “setor produtivo”
Um rosto da simbiose entre IPA e FPA é o
engenheiro agrônomo João Henrique Hummel. Ele foi assessor especial do
Ministério da Agricultura de 2003 a 2005, durante o primeiro mandato de Lula.
De 2008 a 2021, foi diretor-executivo tanto do instituto quanto da frente
parlamentar. Graças à experiência nos meandros do poder, hoje em dia faz
análises políticas para os clientes. Hummel avalia, e comemora, que o Congresso
tomou parte do poder do governo devido à explosão de verba de emendas
parlamentares. E que o governo Lula está a afundar politicamente. Em 2018,
abriu uma consultoria, a Action, que na prática ensina como montar frentes nos
moldes da bancada ruralista. Eis uma das razões para a proliferação de
organizações pró-capital e livre mercado nos últimos anos.
Ao deixar o IPA e a bancada ruralista em
2021, Hummel tornou-se diretor executivo de duas outras frentes parlamentares,
a do Biodiesel e a do Empreendedorismo. Ambas assinaram nota conjunta com a
FPA, em 13 de junho, na qual cobram do Congresso a derrubada da medida
provisória que amplia a tributação “dos moradores de cobertura”. “Não
aceitaremos medidas que penalizem (sic) o produtor rural, o trabalhador e o
consumidor para cobrir o descontrole fiscal”, disse na ocasião o presidente da
bancada ruralista, Pedro Lupion, do PP do Paraná. Lupion está à frente da FPA
desde 2023 e, no fim de 2024, reelegeu-se para mais dois anos. Desde a criação
formal da bancada, não tinha havido reeleição.
“A elite rural brasileira se apropriou dessa
nova forma de organização – as frentes parlamentares – para estabelecer sua
representação de forma mais efetiva no legislativo federal”, afirma um texto
publicado em 2023 na Revista de Sociologia e Política intitulado “A força da
bancada do boi: a Frente Parlamentar da Agropecuária na definição da política
fundiária”. O texto resultou de uma pesquisa feita por quatro acadêmicos:
Monyele Camargo Graciano, Joelson Gonçalves de Carvalho, Ricardo Serra
Borsatto e Leandro de Lima Santos. Segundo o quarteto, a FPA é herdeira dos
valores reacionários da tradicional UDR, a União Democrática Ruralista, e leva
adiante, ao mesmo tempo, uma agenda de defesa dos interesses patronais das
grandes corporações do agronegócio. “Tem concentrado suas ações em proposições
que instruem a mudança da legislação trabalhista, fundiária, tributária,
indigenista e quilombola, da mesma forma como se empenhou para a aprovar o novo
texto do Código Florestal, em 2012”, anotam os autores.
Os senhores que investem contra os direitos
dos brasileiros consideram-se vítimas. “Este governo persegue o setor
produtivo”, reclamou o deputado Rodolfo Nogueira, do PL do Mato Grosso do Sul,
presidente da Comissão de Agricultura da Câmara. A declaração foi feita em um
seminário realizado pela bancada ruralista em 10 de junho para debater o Plano
Safra. Evento digno de outras notas. O deputado paulista pelo Cidadania,
Arnaldo Jardim, um dos vice-presidentes da FPA, comentou: “Estamos sempre
lutando para que os trabalhadores do campo tenham o mínimo para conseguir
trabalhar”. Jardim não quis, claro, admitir que o campo paga muito mal aos
trabalhadores, mas a verdade é que paga. Os empregados do setor rural recebiam
em média 2,1 mil reais em abril, conforme o IBGE, o equivalente a 64% do
salário médio geral, de 3,3 mil. Não é um fato isolado ou sazonal. Tem sido
assim há anos. Comparação: a indústria pagava 3,3 mil em abril e o comércio,
2,8 mil. O emprego no campo tem ido ladeira abaixo, devido à mecanização. Em
2012, eram 10 milhões de vagas, 11% do total do País. Em abril, 7,6 milhões, ou
7,3%, o pior nível nas estatísticas do IBGE iniciadas em 2012.
Em média, as propriedades rurais pagaram 1,4
mil reais de ITR em 2022
No seminário, a senadora Teresa Cristina, do
PL do Mato Grosso do Sul, afirmou que “o governo não prioriza o setor que mais
impulsiona a economia”. Os ruralistas sentem-se a locomotiva nacional. Assim
reagiram durante a divulgação do PIB de 2023. O País havia crescido 3,2% e o
agro, sozinho, 16,3%. Em 2024, o setor encolheu 3,2%? E o PIB geral? Alta de
3,4%. A agropecuária pura, desenvolvida nas propriedades rurais, representa
entre 5% e 6% do PIB, segundo o IBGE. O assunto ganha complexidade por causa das
indústrias e dos serviços associados à agropecuária. A CNA, órgão patronal
rural, financia um departamento da USP para calcular o tamanho do agronegócio,
no qual se incluem as indústrias e os serviços associados ao campo. Nesse caso,
a fatia do setor foi de 23% nos últimos dois anos.
Observa-se a mesma complexidade nas
estatísticas do comércio exterior. Na contabilidade do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio, a agropecuária exportou 72 bilhões de
dólares no ano passado, 21% das vendas totais do País. O carro-chefe foi a
soja, 43 bilhões, atrás apenas do petróleo (45 bilhões), classificado como
“indústria extrativa”. Negócios com carnes (bovina, suína e de aves), farelo de
soja e açúcar, um bolo de 50 bilhões de dólares, não foram (é assim
tradicionalmente) contabilizados na agropecuária, mas como “indústria de
transformação”. Categorias à parte, na balança comercial, a agropecuária pode,
de fato, reivindicar o papel de locomotiva. Se o Brasil teve 74 bilhões de reais
de saldo favorável no ano passado, foi graças ao superávit de 66 bilhões da
agropecuária “pura”. Eis uma danação nacional: depender de dólares do agro.
O foco exportador da agropecuária tem
potencial para causar problemas sérios aos brasileiros e, por tabela, à
tentativa de reeleição de Lula. É o que diz uma análise levada ao presidente no
início do ano pelo líder do governo no Senado, Jaques Wagner, do PT baiano.
Essa análise é de autoria do engenheiro agrônomo Gerson Teixeira, ex-presidente
da Associação Brasileira de Reforma Agrária e chefe do núcleo agrário da
campanha eleitoral do petista em 2022. Segundo Teixeira, o foco exportador tem dois
problemas. Um é o avanço do cultivo da soja, que se apropria de áreas que
poderiam ser usadas para produzir arroz, feijão e mandioca. O outro é a
internacionalização dos preços da comida no Brasil. Tudo somado, a oferta de
alimentos é restrita e o preço, alto. Só não teria ocorrido ainda uma crise
grave graças à ampliação do consumo de alimentos ultraprocessados. Teixeira
sugere restringir ou taxar as exportações (a Índia proibiu as vendas externas
de arroz em 2023) e usar o Plano Safra e a Companhia Nacional de Abastecimento
para redesenhar a produção nacional.
No início do ano, o senador Beto Faro, do PT
do Pará, propôs uma lei pela qual o governo calcularia os preços mínimos para
arroz, feijão e milho e usaria esses cálculos para conter o preço final.
Teixeira é colaborador do senador. E reuniu outros dados interessantes sobre o
agronegócio e a concentração de terras. Em 2020, apenas 2,2% das propriedades
rurais abrangia 61% de toda a área ocupada pelos imóveis registrados no
Sistema Nacional de Cadastro Rural. Em 2024, o sistema identificava 52 mil
propriedades improdutivas, cuja área somada era de 23% do terreno total ocupado
por aqueles imóveis registrados em 2020. Outra descoberta do agrônomo: é do
agronegócio a empresa campeã de isenções tributárias. É a Dairy Partners
Americas, conhecida por vender produtos lácteos das marcas Chambinho e
Chandelle. A firma é controlada por uma multinacional francesa, a Lactalis.
Tamanho da mamata da multinacional: 16 bilhões de reais. Pela exorbitância dos
valores, cerca de 10% de toda a isenção do ano passado, a Receita resolveu
verificar a situação. Quando cobra imposto de ruralistas, o Brasil é uma mãe. O
ITR, tributo devido por dono de terra, rendeu aos cofres públicos 2 bilhões de
reais por ano, em média, entre 2015 e 2024, de acordo dados da Receita. Em
2022, exatos 1,987 milhão de contribuintes pagaram ITR, conforme o “Leão”.
Significa que cada um recolheu meros 1,4 mil reais, em média (a arrecadação
naquele ano somou 2,7 bilhões). A reportagem pediu ao Fisco o número de
contribuintes ano a ano de 2015 a 2024 e não foi atendida.
O ministro Haddad está certo: é o Brasil que sustenta o agro, e não o contrário.
Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital,
em 02 de julho de 2025.
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