O Globo
Em vez de lutar pela paz, damos munição aos
que, como nós, só precisam de um gatilho para acionar a própria beligerância
A guerra é estúpida, as pessoas são
estúpidas, e, em certos meios, o amor não significa nada. Quem já era nascido
no emblemático ano de 1984 há de se lembrar da figura andrógina de Boy George
entoando, em inglês, esse pop new age de protesto. Talvez se
referisse à guerra Irã-Iraque
ou àquela em que a então União Soviética se atolava, no Afeganistão.
Pode ser que evocasse outra, convenientemente interminável, entre Oceania,
Eurásia e Lestásia, travada no romance de George Orwell.
Se, como no filme “Underground”, de Emir Kusturica, tivéssemos nos refugiado, naquela época, em algum subterrâneo, e só botássemos a cabeça para fora 41 anos depois, acreditaríamos que tudo continuava na mesma: os russos barbarizando (agora na Ucrânia), o Irã diante de outro antagonista (agora, Israel). E Oceania, Eurásia e Lestásia, mais reais do que nunca, num embate cujo objetivo não é a vitória, mas a manutenção do conflito — e, consequentemente, da mobilização, do medo.
A guerra é estúpida e nos estupidifica. Não
importa quão distantes estejamos do campo de batalha, nos alistamos
voluntariamente em algum regimento e preparamos nossa carga de artilharia — nas
redes sociais, na imprensa, nos canais de notícia. E, em vez de lutar pela paz,
desandamos a fornecer munição aos que, como nós, só precisam de um gatilho para
acionar a própria beligerância.
Aí aparecem as feministas pró-Irã — uma
teocracia onde “direitos” e “mulheres” dificilmente frequentam a mesma frase,
sendo cabelos e ideias igualmente inimigos do regime, combatidos na base da
porrada. E os “queer pela Palestina” — solidários não ao povo que merece um
Estado livre, soberano e democrático, mas ao grupo terrorista que o parasita e
que ofereceria de bom grado o espetáculo de pendurar pelo pescoço (ou atirar do
topo de edifícios) qualquer um que hasteasse (literal ou metaforicamente) a bandeira
do arco-íris.
É o ensejo para questionar por que Israel —
que precisa se defender e garantir a própria sobrevivência — pode ter armas
nucleares, e o Irã — ditadura teocrática que mantinha um relógio em contagem
regressiva para aniquilar um Estado laico e plural —não. Ou, a pretexto de uma
pergunta técnica, se indignar por mísseis lançados contra alvos militares
em Gaza atingirem
a população civil — usada como escudo humano — e não haver número equivalente
de baixas (“só uma mortezinha daqui, outra dali”) entre os israelenses,
devidamente protegidos em bunkers ou sob o manto de baterias antiaéreas.
Não há de ser ignorância ou má-fé, mas uma
ação deliberada de fazer com que os sinos que dobram em Gaza, Kiev, Teerã, Tel Aviv —
e talvez venham a soar em Taipé, Pyongyang,
Essequibo —dobrem sempre por nós. Pelo atávico e cuidadosamente cultivado
antiamericanismo de centro acadêmico que faz a esquerda reencenar o eterno
retorno da luta de Davi contra Golias — em que Davi é sempre ela (ainda que
indisfarçavelmente antissemita e autoritária) e Golias (como o inferno e os
fascistas) é sempre o outro.
Seria bom reler Orwell e voltar a ouvir Boy
George em certos meios onde o amor não significa nada, e não se percebeu quão
estúpidas são as guerras e as pessoas que se deixam seduzir por elas.
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