Julgamento de artigo do Marco Civil trouxe avanço
O Globo
Foi sensato atribuir responsabilidades a
plataformas digitais. Congresso deve agora suprir lacunas na tese do STF
Diante da falta de regras que transformou as redes sociais em terra de ninguém, é um alento a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, por 8 votos a 3, reconhece responsabilidade das plataformas digitais pelo conteúdo nelas veiculado. Sem dúvida, o meio digital ficará mais seguro para todos. Pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet, de 2014, as empresas só eram consideradas juridicamente responsáveis se deixassem de remover conteúdo ilegal depois de receber ordem judicial. Tal dispositivo favorecia a proliferação de todo tipo de crime nas redes. Os ministros do Supremo consideraram o artigo parcialmente inconstitucional, por não oferecer proteção suficiente aos direitos fundamentais dos brasileiros.
Ao fim do julgamento, a Corte formulou uma
tese com 14 pontos estabelecendo novas regras. Ela ainda abre exceções em que
permanece a norma antiga, mas o avanço é inegável. Agora as plataformas serão
consideradas corresponsáveis por conteúdos ilegais assim que notificadas pelas
partes afetadas e, em casos extremos, mesmo antes, sem necessidade de ordem
judicial. Ressalvadas as exceções, passa a valer o sistema descrito no artigo
21, conhecido como notice and take down (antes válido para violação de intimidade).
Regra similar vigora em países da União Europeia e, embora violações continuem
a ocorrer, tem se mostrado viável.
Não menos relevante é a decisão de que as
empresas têm “dever de cuidado” e precisam atuar de forma preventiva na remoção
de determinados tipos de conteúdo ilegal, entre os quais incitação à violência,
terrorismo, crimes graves contra crianças e adolescentes e conspirações
antidemocráticas. É o tipo de regra que nem deveria depender de determinação da
Corte para ser aplicada. As empresas costumam alegar que já fazem moderação em
vários casos. Mas têm sido omissas. Agora serão obrigadas a atuar preventivamente
— ou serão cúmplices dos crimes.
Infelizmente, a Corte perdeu a oportunidade
de ampliar o alcance das medidas. Crimes contra a honra, como injúria, calúnia
e difamação, foram tratados como exceção, sob o argumento de preservar a
liberdade de expressão. Para eles, valerá o artigo 19: as redes só serão
responsáveis por conteúdos desse tipo se ignorarem decisão judicial. Quando a
sentença é proferida, porém, o dano já está feito, muitas vezes sem reparação
possível. Não há justificativa para a honra não receber a mesma proteção que os
demais direitos.
A ideia de que o sistema notice and take down
sufocará a liberdade de expressão nas redes não encontra respaldo na realidade.
Um estudo do NetLab, da UFRJ, mostra que, na União Europeia, o dispositivo não
levou à remoção maciça de conteúdos. A proporção de pedidos para tirar posts do
ar atendidos pelas plataformas variou entre 21,3% (Facebook) e
35,4% (X). Na maior parte dos casos, a remoção ocorreu por decisão espontânea
das empresas e envolveu a violação de regras internas.
O STF cumpriu o seu papel de disciplinar as
redes diante da omissão reiterada do Congresso, onde o Projeto de Lei das Redes
Sociais não andou. Mas isso não significa que deputados e senadores não devam
assumir seu papel na regulação do tema. A decisão da Corte vale até que o
Parlamento estabeleça regras melhores. Não há dúvida de que se avançou, mas,
como mostra o caso dos crimes contra a honra, pode-se avançar ainda mais. Para
isso, cabe ao Congresso se mexer.
Desmonte da Lei Cidade Limpa é um desserviço
aos paulistanos e ao Brasil
O Globo
Legislação contra poluição visual, que
recebeu mais de 40 prêmios no exterior, é alvo de projeto descabido
A Lei Cidade Limpa, que vigora há quase duas
décadas em São
Paulo, é um marco no ordenamento da paisagem da maior metrópole brasileira
e serviu de inspiração para que outras administrações país afora reduzissem a
poluição visual. Por isso causa preocupação que esteja em risco. Em maio, a
Câmara de Vereadores paulistana aprovou em primeira votação a flexibilização da
lei, e haverá audiências públicas para debater o tema.
Pelo projeto do vereador Rubinho Nunes
(União), a instalação de painéis de LED seria autorizada em locais específicos,
como a Avenida Paulista e a esquina das avenidas Ipiranga e São João, tendo
como inspiração a Times Square de Nova York. Uma das medidas que despertam
preocupação é a permissão para que anúncios cubram até 70% de bens de valor
cultural (como prédios históricos). A prática é proibida e contraria o espírito
da lei. O projeto libera também anúncios em parques, praças, muros, viadutos,
passarelas, túneis e nos deques instalados em vagas de estacionamento
(parklets). É quase um “liberou geral”.
Foi o ex-prefeito e atual secretário de
Governo do Estado de São Paulo, Gilberto
Kassab, que sancionou a lei em 2006. Ele chama a flexibilização de
“punhalada” na cidade. “Uma lei que recebeu aplausos no mundo inteiro e conta,
de acordo com várias pesquisas, com o apoio de quase 100% dos paulistanos não
pode ser alterada”, afirmou.
Um dos muitos méritos da lei, além de
disciplinar letreiros, outdoors, anúncios em prédios, foi inspirar outras
prefeituras a seguir o mesmo caminho. No Rio, em 2012, o prefeito Eduardo Paes
baixou decreto criando uma Zona de Preservação Paisagística e Ambiental que
restringia a publicidade em áreas públicas e proibia os enormes letreiros no
alto de prédios, uma ofensa à paisagem da cidade. Posteriormente, a legislação
sofreu retrocesso, mas alguns efeitos permaneceram.
Cidades não são estáticas. Áreas se
valorizam, outras se deterioram, a população adquire novos hábitos, surgem
novos serviços e fluxos de deslocamento, o uso da tecnologia impõe mudanças. É
natural que, de tempos em tempos, a legislação municipal seja atualizada à luz
do novo contexto. No Rio, a Prefeitura despertou controvérsia ao fixar novas
normas para ordenar a orla marítima, com impacto no funcionamento de quiosques
e barracas de ambulantes. O espaço estava caótico, era preciso organizá-lo.
Houve recuos, mas as mudanças entraram em vigor.
Em São Paulo, é admissível que algumas
restrições estejam defasadas, mas o projeto em discussão promove o desmonte da
legislação que recebeu mais de 40 prêmios internacionais. Não parece sensato
encher a cidade de anúncios. Muito menos esconder construções históricas com
publicidade. A lei não baniu a propaganda, apenas criou regras para reduzir a
poluição visual e permitir uma cidade mais harmoniosa. Seria uma lástima voltar
ao vale-tudo. Nas discussões que se seguirão com participação da sociedade, é fundamental
que se preserve a essência da lei. É o mínimo que os paulistanos esperam do
poder público.
Em causa própria, Câmara despreza opinião da
sociedade
Folha de S. Paulo
Projeto que amplia número de deputados,
aprovado pelo Congresso, distorce a Constituição e contraria 76% dos
brasileiros
Uma parcela expressiva da população indicou
ao Instituto Datafolha que
rechaça o aumento do número de assentos na Câmara
dos Deputados: nada menos que 76%
dos entrevistados se declararam contrários à medida —dito de outra
forma, 3 a cada 4 brasileiros não queriam vê-la aprovada.
Fosse outra a pauta, tamanha oposição
certamente abortaria a iniciativa. Mas os deputados federais, escorados na
omissão pusilânime dos senadores, resolveram ampliar o próprio espaço no Congresso
Nacional, elevando
de 513 para 531 as vagas na Câmara.
A deliberação em favor de si mesmos contou
com o beneplácito de nomes à esquerda e à direita, no governo e na oposição.
Entre os partidos, apenas PSOL, Cidadania, Novo e Rede orientaram o voto pela
derrubada do projeto, que terminou referendado nas duas Casas e agora segue
para sanção presidencial.
Na superfície, os legisladores dizem
respeitar determinação do Supremo Tribunal Federal. A corte, de fato, decidiu
que a Câmara deveria resgatar a proporção entre número de deputados e tamanho
das populações estaduais, de acordo com o Censo 2022.
Foi com bons motivos que o STF chegou a
essa ordem. Trata-se de observar um mandamento constitucional criado com a
finalidade de garantir peso aproximado para os votos dos brasileiros. Se a
população de um estado aumenta ou diminui, sua bancada de deputados deveria
acompanhar o mesmo movimento.
Os congressistas, porém, notaram uma brecha
que ninguém de boa-fé ousaria aproveitar: eles recuperaram a devida
proporcionalidade na Câmara, mas o fizeram não com a redistribuição dos
assentos existentes, e sim com o acréscimo de 18 postos na Casa.
E não é que fosse complicado manter o total
de deputados em 513. Bastaria retirar vagas das setes unidades da Federação que
registraram decréscimo populacional nas últimas décadas e redirecioná-las para
as nove cujo número de habitantes aumentou.
Com empáfia típica dos que se sabem
equivocados, os legisladores ainda argumentaram que, na versão final do
projeto, estabeleceu-se que não haverá aumento de despesa em razão da criação
de cadeiras parlamentares.
Acredite quem quiser. Para começo de
conversa, eles não têm como controlar os gastos com o efeito cascata, pois à
elevação de vagas na Câmara corresponde o acréscimo automático de assentos em
Legislativos dos estados.
Ademais, discute-se como será a divisão das
emendas parlamentares quando os novos deputados forem eleitos —e pode-se
imaginar que a proposta vencedora será a que mais inflar o bolo atual, já acima
de R$ 50 bilhões em um país premido pelo déficit fiscal.
Nada disso parece fazer a mínima diferença
para os congressistas. Encastelados em seus mandatos, eles abusam das
prerrogativas legislativas para representar em primeiro lugar os próprios
interesses, à revelia do que pensa —ou precisa— a sociedade.
Entre Trump e Putin, Europa promete reforço à
Otan
Folha de S. Paulo
Países da entidade aceitam elevar gasto
militar, o que atende à necessidade de segurança provocada pela Guerra da
Ucrânia
O encontro de líderes da Organização do
Tratado do Atlântico Norte na quarta (25) selou um acordo necessário, embora
ainda incerto em sua efetividade, entre EUA e Europa.
Donald Trump engoliu
seus sucessivos impropérios contra a Otan diante
do aval dos aliados europeus à elevação
dos gastos militares de 2% para 5% do Produto Interno Bruto ao ano até
2035 —o que representará um desembolso adicional de mais de 1 trilhão de euros
pelos 32 países que integram a entidade.
Nos 5%, 3,5% irão para despesas propriamente
militares, com ajuda a Kiev incluída nesse percentual, e 1,5% será destinado à
infraestrutura e resiliência civil.
Ao menos por ora, o republicano enterrou sua
ameaça de retirar os EUA da organização e aceitou o compromisso de defesa mútua
em caso de agressão a qualquer dos aliados, como estabelece o artigo 5º da
Carta da Otan. Não foi pouco para um encontro iniciado sob a suspeita de
fracasso e concluído com a omissão da guerra entre Rússia e Ucrânia em
sua declaração final.
A Casa Branca alardeou o pacto como uma
vitória de Trump. Mas não foi tão forçoso para os europeus aceitarem seus
termos, já que de certa forma o acordo acomoda-se às necessidades de segurança
na região e aos dispêndios em ascensão desde que o exército de Vladimir
Putin invadiu o país vizinho em 2022.
No ano passado, 22 dos 30 membros europeus da
Otan cumpriram o piso vigente de 2%. Entre eles, a Polônia, localizada na
fronteira com a Rússia, atingiu 4,12%. A União
Europeia anunciou neste 2025 gastos
de US$ 860 bilhões em rearmamento, embora sem indicar em qual período.
A nova meta, a ser revisada em 2029,
certamente imporá aos europeus desafios orçamentários em um contexto político
turbulento, com o avanço de partidos de extrema-direita e a fragilidade das
bases legislativas de vários de seus governos.
Medidas a serem tomadas para cumprir o acordo
tendem a gerar contrariedade da opinião pública. Sobretudo se o histórico
modelo de bem-estar social for impactado por uma expansão de gastos militares
que dificilmente resultará em impulso às economias nacionais e em tranquilidade
nas finanças públicas.
O revanchismo de Trump, ao vislumbrar
retaliações tarifárias dos EUA aos aliados que descumprirem a meta, em nada
propicia a implementação do acordo. A bem do reforço da Otan, quando se trata
de prevenir um conflito em solo europeu, a sabedoria recomenda flexibilidade e
redução de atritos entre aliados.
Traidores de São Paulo
O Estado de S. Paulo
Um senador e 14 deputados paulistas
avalizaram o infame projeto que aumenta o número de assentos na Câmara,
ampliando a distorção representativa da população de São Paulo no Congresso
Num dos episódios mais lamentáveis da atual
legislatura, o Congresso aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 177/2023,
que aumenta de 513 para 531 o número de deputados federais no País – e com o
voto de vários parlamentares eleitos por São Paulo, uma verdadeira traição ao
Estado que se verá ainda mais sub-representado.
Em flagrante desrespeito à jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal (STF) e à própria lógica da representação política
proporcional, os parlamentares deram um drible vergonhoso na Constituição e na
Lei Complementar (LCP) 78/1993, preferindo atender a seus interesses
corporativistas em vez de corrigir uma distorção histórica na distribuição de
assentos na Câmara.
Em 2023, o STF foi claro. Cabia ao Congresso
redistribuir as cadeiras na Câmara, até 30 de junho de 2025, com base nos dados
do Censo de 2022, de modo a refletir, na Casa de representação da sociedade, a
nova realidade populacional do Brasil. Nada mais republicano, nada mais
democrático, nada mais justo. Em momento algum, é preciso frisar, o Supremo
tratou de aumento do número de deputados federais. O verbo sempre foi
“redistribuir”.
A Lei Maior, em seu art. 45, parágrafo
primeiro, estabelece que a representação dos Estados deve ser proporcional à
sua população. A LCP 78/1993, que o regulamentou, fixou o mínimo de 8 e o
máximo de 70 deputados por unidade da Federação. Para que o mandamento
constitucional fosse respeitado, a partir de 2027 alguns Estados deveriam
perder assentos (Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e
Rio Grande do Sul) e outros deveriam ganhar (Amazonas, Ceará, Goiás, Mato
Grosso, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina). Simples assim.
O que o Congresso fez, no entanto, foi ceder,
por meio de uma malandragem, às pressões dos Estados que deveriam reduzir suas
bancadas. Em vez de corrigir a sub e a super-representação de certos Estados e
melhorar a qualidade da democracia representativa, inchou a Câmara com mais 18
cadeiras para que ninguém perdesse o injustificável privilégio de ter uma
representação acima da que deveria. Ou seja, o Congresso contribuiu para que
determinados votos sigam valendo muito mais do que outros no País.
O caso de São Paulo, Estado mais populoso da
Federação, é o mais gritante de todos. Com 46 milhões de habitantes, São Paulo
representa quase 22% da população brasileira, mas detém apenas 13% das cadeiras
na Câmara dos Deputados. Embora atinja o teto constitucional de 70 deputados, o
Estado ainda está severamente sub-representado em relação à sua pujança
demográfica. Enquanto isso, para citar apenas um exemplo, o Acre, Estado com
menos de 900 mil habitantes, continua com oito deputados – o mínimo constitucional
–, o que confere a seus eleitores um poder de voto quase seis vezes superior ao
dos eleitores paulistas.
Ainda pior do que isso é constatar que essa
deformação contou com o aval de 14 representantes de São Paulo, pasme o leitor,
quando o projeto passou na Câmara dos Deputados, no início de maio. Os
avalistas desse arranjo indigno, uma traição aos interesses do Estado, foram os
seguintes: João Cury (MDB), Antonio Carlos Rodrigues (PL), Tiririca (PL),
Fausto Pinato (PP), Mauricio Neves (PP), Cezinha de Madureira (PSD), Ribamar
Silva (PSD), Alencar Santana (PT), Alfredinho (PT), Arlindo Chinaglia (PT), Ely
Santos (Republicanos), Maria Rosas (Republicanos), Paulinho da Força
(Solidariedade) e David Soares (União). No dia 25 passado, a eles se uniu na
deslealdade o senador Giordano (MDB).
São Paulo merecia mais respeito e uma
representação bem mais qualificada, sobretudo no Senado, à altura de sua
história.
Bastava um ato de responsabilidade
institucional: redistribuir os assentos, mantendo-se o número total de 513
deputados. Mas deputados e senadores optaram por um caminho mais torpe.
Dobraram a aposta no erro para manter o desequilíbrio, uma decisão pusilânime,
tomada em nome não dos interesses da sociedade, mas da conveniência política e
da autopreservação dos próprios parlamentares.
O presidente Lula da Silva tem agora a
oportunidade de vetar esse projeto espúrio. É pouco provável que o faça, mas,
se o fizer, sustará uma irresponsabilidade que só contribui para corroer ainda
mais a confiança dos cidadãos nas instituições republicanas.
A crise de identidade do Partido Democrata
O Estado de S. Paulo
A guinada radical dos democratas em Nova York
é mais revanche que reforma, mais indignação que estratégia – um verdadeiro
manual de como não reconstruir um partido em frangalhos
Mais do que uma disputa local, a primária
democrata para a prefeitura de Nova York oferece um retrato da crise de
identidade e da disfuncionalidade que degradam o partido. A eleição de Zohran
Mamdani – um socialista com propostas radicais e retórica incendiária – é um
sintoma preocupante de um partido que, buscando reagir ao populismo de direita,
parece disposto a imitá-lo em forma e método.
Mamdani não é um desvio isolado. Sua campanha
é alimentada por uma base jovem, mobilizada e desencantada com a política
tradicional. Sua retórica antissistema, o culto personalista e a demonização de
adversários são espelhos quase simétricos da estratégia de Donald Trump, com
sinal ideológico invertido. A simetria não é só estética: é um risco à
estabilidade do sistema político americano, pois ameaça consolidar um cenário
de dois partidos selvagens, dispostos a atropelar normas e instituições em nome
de suas causas.
O caso nova-iorquino é exemplar. A cidade
enfrenta desafios graves: moradia inacessível, criminalidade reincidente,
deterioração de serviços públicos e evasão de contribuintes. O eleitorado
democrata foi convidado a escolher entre dois extremos: Andrew Cuomo, um
ex-governador das elites democratas com histórico de escândalos, e Mamdani, um
utopista inexperiente cuja agenda representa um salto no escuro. As propostas
do socialista incluem aluguel congelado, cortes drásticos no orçamento da
polícia, fartos subsídios e gratuidade indiscriminada de serviços públicos. Na
prática, implicariam aumento do custo de vida, deterioração da segurança e fuga
de investimentos. Prometem alívio, mas entregam instabilidade.
Demandas por justiça social, acessibilidade
urbana e maior representatividade são legítimas. O problema é quando a resposta
vem em forma de soluções simplistas, com embalagem de rebelião moral. A
experiência dos últimos anos já demonstrou os riscos do populismo
institucionalizado. Donald Trump desfigurou o Partido Republicano por meio de
uma insurgência identitária e autoritária. Se os democratas seguirem o mesmo
caminho, trocarão a virtude da responsabilidade pela ilusão do entusiasmo.
A tentação de espelhar o trumpismo é
compreensível, mas contraproducente. O radicalismo democrata tende a alienar o
eleitor mediano, calcificar a polarização e inflamar ainda mais o radicalismo à
direita. O país, em vez de uma alternância civilizada de projetos, pode
mergulhar numa dinâmica de vingança política entre facções rivais.
O Partido Democrata não está condenado a esse
destino. Há vozes sensatas e moderadas na legenda: governadores, prefeitos e
parlamentares que têm demonstrado que é possível aliar justiça social com
responsabilidade fiscal, abertura à diversidade com respeito à lei, compromisso
ambiental com viabilidade econômica. Há, inclusive, sinais de que a base
democrata começa a reagir aos excessos culturais e à retórica inflamada do
ativismo “woke”. Mas esses sinais precisam se traduzir em lideranças, propostas
e vitórias eleitorais.
A eleição de Mamdani é um sinal alarmante.
Não apenas pela agenda que representa, mas pelo caminho que indica. Um partido
que escolhe a radicalização como resposta ao fracasso não aprende com os erros
– apenas os replica com nova roupagem. Populistas, de esquerda ou direita,
florescem quando as instituições falham, mas não oferecem cura. Ao contrário,
são muitas vezes a metástase da mesma doença.
Para reconstruir a confiança dos eleitores,
os democratas devem abandonar fantasias revolucionárias e encarar o desafio
real da governança moderna: entregar resultados tangíveis, proteger a
liberdade, respeitar o pluralismo e construir consenso. Nada disso se faz com
slogans ideológicos ou vitimismos identitários. Faz-se com competência, coragem
e compromisso com o bem comum.
A alternativa aos demagogos reacionários não
são demagogos revolucionários. São estadistas responsáveis. Se o Partido
Democrata quiser voltar a governar o país, precisa primeiro governar a si
mesmo. Nova York, hoje, oferece um teste à sua lucidez. O resultado interessará
a todos os Estados Unidos.
Tarcísio cede à demagogia municipal
O Estado de S. Paulo
Sanção à lei inconstitucional sobre mototáxi
é erro jurídico e político do governador
O governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas (Republicanos), sancionou uma lei que confere aos 645 municípios do
Estado o poder de autorizar ou proibir o transporte individual remunerado de
passageiros por motocicletas, conhecido como mototáxi. A Lei Estadual n.º
18.156/2025, aprovada recentemente pela Assembleia Legislativa do Estado de São
Paulo (Alesp), é tão flagrantemente inconstitucional quanto o Decreto Municipal
n.º 62.144/2023, assinado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), que proibiu a
oferta do serviço na capital paulista.
Talvez seja o caso de relembrar: a
Constituição é expressa ao atribuir à União a competência privativa para
legislar sobre trânsito e transporte, como está escrito em português cristalino
no artigo 22, inciso XI. Ademais, a Lei Maior consagra a livre iniciativa como
um dos princípios fundamentais da República desde o seu artigo inaugural. As
prefeituras podem – na verdade, devem – apenas regulamentar a prestação do
serviço, tal como já é feito para uma miríade de atividades econômicas.
Tarcísio de Freitas é um servidor público
preparado e experiente. Decerto sabe de tudo isso, além de contar, espera-se,
com uma assessoria à altura do cargo que ocupa. Logo, a conclusão incontornável
é a de que o governador paulista está fazendo o jogo político-eleitoral de
Nunes, que há um par de anos tem sido um ardoroso oponente das empresas
privadas que operam o serviço de mototáxi na cidade de São Paulo.
As razões para tanta oposição ainda são
obscuras. Nunes alega preocupação com o eventual aumento do número de mortes no
trânsito da metrópole caso o serviço seja liberado. Ora, a precária – para não
dizer ausente – fiscalização de trânsito nas vias públicas de São Paulo e o
crescente número de mortes entre motociclistas, a despeito da proibição do
mototáxi, não corroboram a prudência apregoada pelo prefeito.
A realidade econômica, como sói acontecer,
impõe-se aos desígnios políticos. Há demanda para o serviço de mototáxi em São
Paulo porque outros modais simplesmente não atendem às necessidades dos
cidadãos, sobretudo os que vivem nas periferias da cidade. Estes já recorrem
aos mototaxistas informais, vale dizer, clandestinos. Muito melhor será
regulamentar a oferta do serviço e fixar critérios de segurança para condutores
e passageiros, com fiscalização firme e diligente da Prefeitura.
O Supremo Tribunal Federal já pacificou o
entendimento de que o mototáxi não pode ser arbitrariamente proibido, e sim
regulamentado pelo poder municipal. O que se espera das autoridades é um
compromisso com soluções sérias e estruturadas para os desafios do transporte
urbano em uma cidade como São Paulo, e não seu envolvimento numa barafunda
jurídica na qual o interesse dos paulistanos que precisam se locomover todos os
dias não parece ser prioridade.
Tarcísio de Freitas deveria ter vetado a lei. Mas, ao dar aos prefeitos um poder que não lhes cabe, o governador cometeu um erro jurídico crasso, aumentou a confusão e, como se nada disso bastasse, ainda tisnou suas credenciais liberais.
Disputa entre Executivo e Legislativo
ultrapassa o embate ideológico
Correio Braziliense
A polarização em Brasília não se resume a
divergências programáticas entre governo e oposição. Trata-se de um conflito de
natureza institucional
Os fatos mais recentes na política brasileira
vêm carregados de apreensões. O impasse em torno do ajuste fiscal, cujo último
lance foi a derrubada do aumento do IOF pelo Congresso, mergulhou a relação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, com a Câmara e o Senado em uma espiral de
estresse que nos traz maus agouros. O país claudica em relação ao equilíbrio
fiscal porque o Executivo não quer cortar gastos e o Congresso não aceita
aumento de impostos. A conta não fecha.
A derrubada do decreto que aumentava o IOF
também tem outras variáveis: lobbies poderosos de empresas e setores econômicos
beneficiados por isenções e benefícios tributários, um embate surdo com o
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino em razão da falta de
transferência de emendas parlamentares impositivas, e, como era de se esperar,
um embate entre Lula e a oposição, que serve de objeto de barganha para o
chamado Centrão e antecipa a disputa eleitoral de 2026.
Essa polarização em Brasília não se resume a
divergências programáticas entre governo e oposição. Trata-se de um conflito de
natureza institucional entre o Executivo e o Congresso cuja lógica não é
simplesmente ideológica, mas orçamentária e de poder. Diferentemente do que
seria um ambiente democrático saudável, o embate congestiona o ambiente
institucional, em que as duas Casas do Congresso operam com autonomia quase
absoluta sobre o orçamento público, desequilibrando a relação entre os Poderes.
A face mais visível desse choque é o paradoxo
fiscal imposto pelo Legislativo, que resiste a qualquer tentativa do governo de
aumentar receitas por meio da elevação de tributos ou da reversão de isenções,
ao mesmo tempo em que patrocina a aprovação de medidas que ampliam gastos
públicos e reduzem a arrecadação, muitas vezes por meio de "jabutis"
incluídos de última hora em projetos aparentemente técnicos ou consensuais.
É flagrante esse procedimento, por exemplo,
no caso da regulamentação da energia eólica offshore. Sob influência de grupos
econômicos, parlamentares inseriram dispositivos que fragilizam a regulação,
aumentam subsídios cruzados e encarecem tarifas para o consumidor, a pretexto
de um suposto (e falso) incentivo à transição energética. Na prática, são
emendas que beneficiam lobbies específicos à custa do contribuinte e sem
coerência com o discurso de responsabilidade fiscal.
Outro fato desestabilizador das relações
entre os Poderes é a anabolização de emendas de relator e das transferências
especiais, por meio das quais o Congresso consolidou um poder orçamentário
informal que esvazia a função típica do Executivo de planejar e executar o
Orçamento. Isso transformou o Legislativo em coproprietário da execução
orçamentária e o Planalto, em refém de negociações frequentemente não
transparentes.
A aprovação de gastos sem contrapartida ou critério nacional amplia o deficit público e dificulta políticas redistributivas estruturadas, tornando o ajuste fiscal mais difícil. O resultado é um ambiente em que não há consenso nem sobre o tamanho do Estado, nem sobre quem paga por ele. Além disso, alimenta-se a armadilha da judicialização da política toda vez que o governo recorre ao STF para contestar medidas aprovadas ou defender prerrogativas do Executivo. Embora legítimo, esse recurso excepcional, pela frequência que vem ocorrendo, corrói o equilíbrio entre os Poderes, além de atrair o STF para o centro da disputa com o Legislativo.
O direito de viver e estar vivo
O Povo (CE)
Neste ano, o tema da Parada da Diversidade é
justamente o envelhecimento: no País que mais mata, projetar o futuro segue
difícil
Após oito anos do assassinato da travesti
Dandara dos Santos, a Justiça sentenciou que houve omissão do policiamento do
Estado do Ceará e condenou-o, em primeira instância, a indenizar em R$ 50 mil a
família de Dandara. Vítima de transfobia e assassinada em 15 de fevereiro de
2017 no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, o caso de Dandara estremeceu o Brasil
e o mundo e escancarou, mais uma vez, os horrores que a comunidade LGBTQIA
enfrenta no cotidiano.
Coincidência que a decisão
"simbólica" — como definida pela advogada da família de Dandara,
Christiane Leitão — tenha ocorrido na semana do Dia Internacional do Orgulho
LGBTQIA , celebrado neste sábado, 28 de junho.
Por outro lado, o direito de viver não se
limita ao de estar vivo, mas principalmente ao entendimento básico de existir
por completo, gozando da tranquilidade para estudar, amar, divertir-se,
passear, expressar-se e envelhecer publicamente. O fato da comunidade LGBTQIA
seguir lutando por direitos tão simplórios — para quem sempre pode exercê-los
plenamente — é mais um alerta para a crueldade à qual ela ainda é submetida.
Recentemente, os brasileiros se mobilizaram
para assistir ao filme biografia do icônico Ney Matogrosso, Homem com H (Esmir
Filho), a partir do qual tiveram contato com a materialização da bravura
cotidiana de existir: na trajetória de Ney Matogrosso, nem a ditadura militar
era tão amedrontadora quanto a impossibilidade de ser. E essa é a história de
toda a comunidade, ontem e hoje.
Há, com certeza, avanços. No entanto, são
passos infantes: foi somente há 12 anos, em 2013, que o casamento homoafetivo
foi legalizado. Em 2015, puderam adotar. Apenas há sete anos, em 2018, o
Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito das pessoas trans de mudar
nome e gênero nos documentos sem necessidade de comprovar cirurgia de
redefinição sexual ou tratamentos para mudança de gênero.
O problema dos direitos recentes é que eles
são especialmente vulneráveis. Dependem do tempo de consolidação e
implementação de políticas públicas efetivas. Mais ainda, dependem da
transformação de uma sociedade adepta ao conservadorismo, acostumada à manutenção
de lógicas antiquadas.
Não à toa, ainda há quem pregue que ser
LGBTQIA é uma opção, ou, pior, uma doença. O Brasil, pelo Conselho Federal de
Medicina, antecipou-se cinco anos à Organização Mundial da Saúde (OMS) ao
retirar, em 1985, a homossexualidade do rol de patologias. Este é apenas um
exemplo de como a sociedade tarda a acompanhar conquistas jurídicas.
O desfecho do caso Dandara simboliza a urgência de pessoas dessa comunidade enxergarem-se fora de contextos de violência. Neste ano, o tema da Parada da Diversidade é justamente o envelhecimento: no País que mais mata, projetar o futuro segue difícil. Para além de estar vivo, que a luta siga pelo direito de viver.
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