sábado, 28 de junho de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Julgamento de artigo do Marco Civil trouxe avanço

O Globo

Foi sensato atribuir responsabilidades a plataformas digitais. Congresso deve agora suprir lacunas na tese do STF

Diante da falta de regras que transformou as redes sociais em terra de ninguém, é um alento a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, por 8 votos a 3, reconhece responsabilidade das plataformas digitais pelo conteúdo nelas veiculado. Sem dúvida, o meio digital ficará mais seguro para todos. Pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet, de 2014, as empresas só eram consideradas juridicamente responsáveis se deixassem de remover conteúdo ilegal depois de receber ordem judicial. Tal dispositivo favorecia a proliferação de todo tipo de crime nas redes. Os ministros do Supremo consideraram o artigo parcialmente inconstitucional, por não oferecer proteção suficiente aos direitos fundamentais dos brasileiros.

Ao fim do julgamento, a Corte formulou uma tese com 14 pontos estabelecendo novas regras. Ela ainda abre exceções em que permanece a norma antiga, mas o avanço é inegável. Agora as plataformas serão consideradas corresponsáveis por conteúdos ilegais assim que notificadas pelas partes afetadas e, em casos extremos, mesmo antes, sem necessidade de ordem judicial. Ressalvadas as exceções, passa a valer o sistema descrito no artigo 21, conhecido como notice and take down (antes válido para violação de intimidade). Regra similar vigora em países da União Europeia e, embora violações continuem a ocorrer, tem se mostrado viável.

Não menos relevante é a decisão de que as empresas têm “dever de cuidado” e precisam atuar de forma preventiva na remoção de determinados tipos de conteúdo ilegal, entre os quais incitação à violência, terrorismo, crimes graves contra crianças e adolescentes e conspirações antidemocráticas. É o tipo de regra que nem deveria depender de determinação da Corte para ser aplicada. As empresas costumam alegar que já fazem moderação em vários casos. Mas têm sido omissas. Agora serão obrigadas a atuar preventivamente — ou serão cúmplices dos crimes.

Infelizmente, a Corte perdeu a oportunidade de ampliar o alcance das medidas. Crimes contra a honra, como injúria, calúnia e difamação, foram tratados como exceção, sob o argumento de preservar a liberdade de expressão. Para eles, valerá o artigo 19: as redes só serão responsáveis por conteúdos desse tipo se ignorarem decisão judicial. Quando a sentença é proferida, porém, o dano já está feito, muitas vezes sem reparação possível. Não há justificativa para a honra não receber a mesma proteção que os demais direitos.

A ideia de que o sistema notice and take down sufocará a liberdade de expressão nas redes não encontra respaldo na realidade. Um estudo do NetLab, da UFRJ, mostra que, na União Europeia, o dispositivo não levou à remoção maciça de conteúdos. A proporção de pedidos para tirar posts do ar atendidos pelas plataformas variou entre 21,3% (Facebook) e 35,4% (X). Na maior parte dos casos, a remoção ocorreu por decisão espontânea das empresas e envolveu a violação de regras internas.

O STF cumpriu o seu papel de disciplinar as redes diante da omissão reiterada do Congresso, onde o Projeto de Lei das Redes Sociais não andou. Mas isso não significa que deputados e senadores não devam assumir seu papel na regulação do tema. A decisão da Corte vale até que o Parlamento estabeleça regras melhores. Não há dúvida de que se avançou, mas, como mostra o caso dos crimes contra a honra, pode-se avançar ainda mais. Para isso, cabe ao Congresso se mexer.

Desmonte da Lei Cidade Limpa é um desserviço aos paulistanos e ao Brasil

O Globo

Legislação contra poluição visual, que recebeu mais de 40 prêmios no exterior, é alvo de projeto descabido

A Lei Cidade Limpa, que vigora há quase duas décadas em São Paulo, é um marco no ordenamento da paisagem da maior metrópole brasileira e serviu de inspiração para que outras administrações país afora reduzissem a poluição visual. Por isso causa preocupação que esteja em risco. Em maio, a Câmara de Vereadores paulistana aprovou em primeira votação a flexibilização da lei, e haverá audiências públicas para debater o tema.

Pelo projeto do vereador Rubinho Nunes (União), a instalação de painéis de LED seria autorizada em locais específicos, como a Avenida Paulista e a esquina das avenidas Ipiranga e São João, tendo como inspiração a Times Square de Nova York. Uma das medidas que despertam preocupação é a permissão para que anúncios cubram até 70% de bens de valor cultural (como prédios históricos). A prática é proibida e contraria o espírito da lei. O projeto libera também anúncios em parques, praças, muros, viadutos, passarelas, túneis e nos deques instalados em vagas de estacionamento (parklets). É quase um “liberou geral”.

Foi o ex-prefeito e atual secretário de Governo do Estado de São Paulo, Gilberto Kassab, que sancionou a lei em 2006. Ele chama a flexibilização de “punhalada” na cidade. “Uma lei que recebeu aplausos no mundo inteiro e conta, de acordo com várias pesquisas, com o apoio de quase 100% dos paulistanos não pode ser alterada”, afirmou.

Um dos muitos méritos da lei, além de disciplinar letreiros, outdoors, anúncios em prédios, foi inspirar outras prefeituras a seguir o mesmo caminho. No Rio, em 2012, o prefeito Eduardo Paes baixou decreto criando uma Zona de Preservação Paisagística e Ambiental que restringia a publicidade em áreas públicas e proibia os enormes letreiros no alto de prédios, uma ofensa à paisagem da cidade. Posteriormente, a legislação sofreu retrocesso, mas alguns efeitos permaneceram.

Cidades não são estáticas. Áreas se valorizam, outras se deterioram, a população adquire novos hábitos, surgem novos serviços e fluxos de deslocamento, o uso da tecnologia impõe mudanças. É natural que, de tempos em tempos, a legislação municipal seja atualizada à luz do novo contexto. No Rio, a Prefeitura despertou controvérsia ao fixar novas normas para ordenar a orla marítima, com impacto no funcionamento de quiosques e barracas de ambulantes. O espaço estava caótico, era preciso organizá-lo. Houve recuos, mas as mudanças entraram em vigor.

Em São Paulo, é admissível que algumas restrições estejam defasadas, mas o projeto em discussão promove o desmonte da legislação que recebeu mais de 40 prêmios internacionais. Não parece sensato encher a cidade de anúncios. Muito menos esconder construções históricas com publicidade. A lei não baniu a propaganda, apenas criou regras para reduzir a poluição visual e permitir uma cidade mais harmoniosa. Seria uma lástima voltar ao vale-tudo. Nas discussões que se seguirão com participação da sociedade, é fundamental que se preserve a essência da lei. É o mínimo que os paulistanos esperam do poder público.

Em causa própria, Câmara despreza opinião da sociedade

Folha de S. Paulo

Projeto que amplia número de deputados, aprovado pelo Congresso, distorce a Constituição e contraria 76% dos brasileiros

Uma parcela expressiva da população indicou ao Instituto Datafolha que rechaça o aumento do número de assentos na Câmara dos Deputados: nada menos que 76% dos entrevistados se declararam contrários à medida —dito de outra forma, 3 a cada 4 brasileiros não queriam vê-la aprovada.

Fosse outra a pauta, tamanha oposição certamente abortaria a iniciativa. Mas os deputados federais, escorados na omissão pusilânime dos senadores, resolveram ampliar o próprio espaço no Congresso Nacionalelevando de 513 para 531 as vagas na Câmara.

A deliberação em favor de si mesmos contou com o beneplácito de nomes à esquerda e à direita, no governo e na oposição. Entre os partidos, apenas PSOL, Cidadania, Novo e Rede orientaram o voto pela derrubada do projeto, que terminou referendado nas duas Casas e agora segue para sanção presidencial.

Na superfície, os legisladores dizem respeitar determinação do Supremo Tribunal Federal. A corte, de fato, decidiu que a Câmara deveria resgatar a proporção entre número de deputados e tamanho das populações estaduais, de acordo com o Censo 2022.

Foi com bons motivos que o STF chegou a essa ordem. Trata-se de observar um mandamento constitucional criado com a finalidade de garantir peso aproximado para os votos dos brasileiros. Se a população de um estado aumenta ou diminui, sua bancada de deputados deveria acompanhar o mesmo movimento.

Os congressistas, porém, notaram uma brecha que ninguém de boa-fé ousaria aproveitar: eles recuperaram a devida proporcionalidade na Câmara, mas o fizeram não com a redistribuição dos assentos existentes, e sim com o acréscimo de 18 postos na Casa.

E não é que fosse complicado manter o total de deputados em 513. Bastaria retirar vagas das setes unidades da Federação que registraram decréscimo populacional nas últimas décadas e redirecioná-las para as nove cujo número de habitantes aumentou.

Com empáfia típica dos que se sabem equivocados, os legisladores ainda argumentaram que, na versão final do projeto, estabeleceu-se que não haverá aumento de despesa em razão da criação de cadeiras parlamentares.

Acredite quem quiser. Para começo de conversa, eles não têm como controlar os gastos com o efeito cascata, pois à elevação de vagas na Câmara corresponde o acréscimo automático de assentos em Legislativos dos estados.

Ademais, discute-se como será a divisão das emendas parlamentares quando os novos deputados forem eleitos —e pode-se imaginar que a proposta vencedora será a que mais inflar o bolo atual, já acima de R$ 50 bilhões em um país premido pelo déficit fiscal.

Nada disso parece fazer a mínima diferença para os congressistas. Encastelados em seus mandatos, eles abusam das prerrogativas legislativas para representar em primeiro lugar os próprios interesses, à revelia do que pensa —ou precisa— a sociedade.

Entre Trump e Putin, Europa promete reforço à Otan

Folha de S. Paulo

Países da entidade aceitam elevar gasto militar, o que atende à necessidade de segurança provocada pela Guerra da Ucrânia

O encontro de líderes da Organização do Tratado do Atlântico Norte na quarta (25) selou um acordo necessário, embora ainda incerto em sua efetividade, entre EUA e Europa.

Donald Trump engoliu seus sucessivos impropérios contra a Otan diante do aval dos aliados europeus à elevação dos gastos militares de 2% para 5% do Produto Interno Bruto ao ano até 2035 —o que representará um desembolso adicional de mais de 1 trilhão de euros pelos 32 países que integram a entidade.

Nos 5%, 3,5% irão para despesas propriamente militares, com ajuda a Kiev incluída nesse percentual, e 1,5% será destinado à infraestrutura e resiliência civil.

Ao menos por ora, o republicano enterrou sua ameaça de retirar os EUA da organização e aceitou o compromisso de defesa mútua em caso de agressão a qualquer dos aliados, como estabelece o artigo 5º da Carta da Otan. Não foi pouco para um encontro iniciado sob a suspeita de fracasso e concluído com a omissão da guerra entre Rússia e Ucrânia em sua declaração final.

A Casa Branca alardeou o pacto como uma vitória de Trump. Mas não foi tão forçoso para os europeus aceitarem seus termos, já que de certa forma o acordo acomoda-se às necessidades de segurança na região e aos dispêndios em ascensão desde que o exército de Vladimir Putin invadiu o país vizinho em 2022.

No ano passado, 22 dos 30 membros europeus da Otan cumpriram o piso vigente de 2%. Entre eles, a Polônia, localizada na fronteira com a Rússia, atingiu 4,12%. A União Europeia anunciou neste 2025 gastos de US$ 860 bilhões em rearmamento, embora sem indicar em qual período.

A nova meta, a ser revisada em 2029, certamente imporá aos europeus desafios orçamentários em um contexto político turbulento, com o avanço de partidos de extrema-direita e a fragilidade das bases legislativas de vários de seus governos.

Medidas a serem tomadas para cumprir o acordo tendem a gerar contrariedade da opinião pública. Sobretudo se o histórico modelo de bem-estar social for impactado por uma expansão de gastos militares que dificilmente resultará em impulso às economias nacionais e em tranquilidade nas finanças públicas.

O revanchismo de Trump, ao vislumbrar retaliações tarifárias dos EUA aos aliados que descumprirem a meta, em nada propicia a implementação do acordo. A bem do reforço da Otan, quando se trata de prevenir um conflito em solo europeu, a sabedoria recomenda flexibilidade e redução de atritos entre aliados.

Traidores de São Paulo

O Estado de S. Paulo

Um senador e 14 deputados paulistas avalizaram o infame projeto que aumenta o número de assentos na Câmara, ampliando a distorção representativa da população de São Paulo no Congresso

Num dos episódios mais lamentáveis da atual legislatura, o Congresso aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 177/2023, que aumenta de 513 para 531 o número de deputados federais no País – e com o voto de vários parlamentares eleitos por São Paulo, uma verdadeira traição ao Estado que se verá ainda mais sub-representado.

Em flagrante desrespeito à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e à própria lógica da representação política proporcional, os parlamentares deram um drible vergonhoso na Constituição e na Lei Complementar (LCP) 78/1993, preferindo atender a seus interesses corporativistas em vez de corrigir uma distorção histórica na distribuição de assentos na Câmara.

Em 2023, o STF foi claro. Cabia ao Congresso redistribuir as cadeiras na Câmara, até 30 de junho de 2025, com base nos dados do Censo de 2022, de modo a refletir, na Casa de representação da sociedade, a nova realidade populacional do Brasil. Nada mais republicano, nada mais democrático, nada mais justo. Em momento algum, é preciso frisar, o Supremo tratou de aumento do número de deputados federais. O verbo sempre foi “redistribuir”.

A Lei Maior, em seu art. 45, parágrafo primeiro, estabelece que a representação dos Estados deve ser proporcional à sua população. A LCP 78/1993, que o regulamentou, fixou o mínimo de 8 e o máximo de 70 deputados por unidade da Federação. Para que o mandamento constitucional fosse respeitado, a partir de 2027 alguns Estados deveriam perder assentos (Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) e outros deveriam ganhar (Amazonas, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina). Simples assim.

O que o Congresso fez, no entanto, foi ceder, por meio de uma malandragem, às pressões dos Estados que deveriam reduzir suas bancadas. Em vez de corrigir a sub e a super-representação de certos Estados e melhorar a qualidade da democracia representativa, inchou a Câmara com mais 18 cadeiras para que ninguém perdesse o injustificável privilégio de ter uma representação acima da que deveria. Ou seja, o Congresso contribuiu para que determinados votos sigam valendo muito mais do que outros no País.

O caso de São Paulo, Estado mais populoso da Federação, é o mais gritante de todos. Com 46 milhões de habitantes, São Paulo representa quase 22% da população brasileira, mas detém apenas 13% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Embora atinja o teto constitucional de 70 deputados, o Estado ainda está severamente sub-representado em relação à sua pujança demográfica. Enquanto isso, para citar apenas um exemplo, o Acre, Estado com menos de 900 mil habitantes, continua com oito deputados – o mínimo constitucional –, o que confere a seus eleitores um poder de voto quase seis vezes superior ao dos eleitores paulistas.

Ainda pior do que isso é constatar que essa deformação contou com o aval de 14 representantes de São Paulo, pasme o leitor, quando o projeto passou na Câmara dos Deputados, no início de maio. Os avalistas desse arranjo indigno, uma traição aos interesses do Estado, foram os seguintes: João Cury (MDB), Antonio Carlos Rodrigues (PL), Tiririca (PL), Fausto Pinato (PP), Mauricio Neves (PP), Cezinha de Madureira (PSD), Ribamar Silva (PSD), Alencar Santana (PT), Alfredinho (PT), Arlindo Chinaglia (PT), Ely Santos (Republicanos), Maria Rosas (Republicanos), Paulinho da Força (Solidariedade) e David Soares (União). No dia 25 passado, a eles se uniu na deslealdade o senador Giordano (MDB).

São Paulo merecia mais respeito e uma representação bem mais qualificada, sobretudo no Senado, à altura de sua história.

Bastava um ato de responsabilidade institucional: redistribuir os assentos, mantendo-se o número total de 513 deputados. Mas deputados e senadores optaram por um caminho mais torpe. Dobraram a aposta no erro para manter o desequilíbrio, uma decisão pusilânime, tomada em nome não dos interesses da sociedade, mas da conveniência política e da autopreservação dos próprios parlamentares.

O presidente Lula da Silva tem agora a oportunidade de vetar esse projeto espúrio. É pouco provável que o faça, mas, se o fizer, sustará uma irresponsabilidade que só contribui para corroer ainda mais a confiança dos cidadãos nas instituições republicanas.

A crise de identidade do Partido Democrata

O Estado de S. Paulo

A guinada radical dos democratas em Nova York é mais revanche que reforma, mais indignação que estratégia – um verdadeiro manual de como não reconstruir um partido em frangalhos

Mais do que uma disputa local, a primária democrata para a prefeitura de Nova York oferece um retrato da crise de identidade e da disfuncionalidade que degradam o partido. A eleição de Zohran Mamdani – um socialista com propostas radicais e retórica incendiária – é um sintoma preocupante de um partido que, buscando reagir ao populismo de direita, parece disposto a imitá-lo em forma e método.

Mamdani não é um desvio isolado. Sua campanha é alimentada por uma base jovem, mobilizada e desencantada com a política tradicional. Sua retórica antissistema, o culto personalista e a demonização de adversários são espelhos quase simétricos da estratégia de Donald Trump, com sinal ideológico invertido. A simetria não é só estética: é um risco à estabilidade do sistema político americano, pois ameaça consolidar um cenário de dois partidos selvagens, dispostos a atropelar normas e instituições em nome de suas causas.

O caso nova-iorquino é exemplar. A cidade enfrenta desafios graves: moradia inacessível, criminalidade reincidente, deterioração de serviços públicos e evasão de contribuintes. O eleitorado democrata foi convidado a escolher entre dois extremos: Andrew Cuomo, um ex-governador das elites democratas com histórico de escândalos, e Mamdani, um utopista inexperiente cuja agenda representa um salto no escuro. As propostas do socialista incluem aluguel congelado, cortes drásticos no orçamento da polícia, fartos subsídios e gratuidade indiscriminada de serviços públicos. Na prática, implicariam aumento do custo de vida, deterioração da segurança e fuga de investimentos. Prometem alívio, mas entregam instabilidade.

Demandas por justiça social, acessibilidade urbana e maior representatividade são legítimas. O problema é quando a resposta vem em forma de soluções simplistas, com embalagem de rebelião moral. A experiência dos últimos anos já demonstrou os riscos do populismo institucionalizado. Donald Trump desfigurou o Partido Republicano por meio de uma insurgência identitária e autoritária. Se os democratas seguirem o mesmo caminho, trocarão a virtude da responsabilidade pela ilusão do entusiasmo.

A tentação de espelhar o trumpismo é compreensível, mas contraproducente. O radicalismo democrata tende a alienar o eleitor mediano, calcificar a polarização e inflamar ainda mais o radicalismo à direita. O país, em vez de uma alternância civilizada de projetos, pode mergulhar numa dinâmica de vingança política entre facções rivais.

O Partido Democrata não está condenado a esse destino. Há vozes sensatas e moderadas na legenda: governadores, prefeitos e parlamentares que têm demonstrado que é possível aliar justiça social com responsabilidade fiscal, abertura à diversidade com respeito à lei, compromisso ambiental com viabilidade econômica. Há, inclusive, sinais de que a base democrata começa a reagir aos excessos culturais e à retórica inflamada do ativismo “woke”. Mas esses sinais precisam se traduzir em lideranças, propostas e vitórias eleitorais.

A eleição de Mamdani é um sinal alarmante. Não apenas pela agenda que representa, mas pelo caminho que indica. Um partido que escolhe a radicalização como resposta ao fracasso não aprende com os erros – apenas os replica com nova roupagem. Populistas, de esquerda ou direita, florescem quando as instituições falham, mas não oferecem cura. Ao contrário, são muitas vezes a metástase da mesma doença.

Para reconstruir a confiança dos eleitores, os democratas devem abandonar fantasias revolucionárias e encarar o desafio real da governança moderna: entregar resultados tangíveis, proteger a liberdade, respeitar o pluralismo e construir consenso. Nada disso se faz com slogans ideológicos ou vitimismos identitários. Faz-se com competência, coragem e compromisso com o bem comum.

A alternativa aos demagogos reacionários não são demagogos revolucionários. São estadistas responsáveis. Se o Partido Democrata quiser voltar a governar o país, precisa primeiro governar a si mesmo. Nova York, hoje, oferece um teste à sua lucidez. O resultado interessará a todos os Estados Unidos.

Tarcísio cede à demagogia municipal

O Estado de S. Paulo

Sanção à lei inconstitucional sobre mototáxi é erro jurídico e político do governador

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), sancionou uma lei que confere aos 645 municípios do Estado o poder de autorizar ou proibir o transporte individual remunerado de passageiros por motocicletas, conhecido como mototáxi. A Lei Estadual n.º 18.156/2025, aprovada recentemente pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), é tão flagrantemente inconstitucional quanto o Decreto Municipal n.º 62.144/2023, assinado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), que proibiu a oferta do serviço na capital paulista.

Talvez seja o caso de relembrar: a Constituição é expressa ao atribuir à União a competência privativa para legislar sobre trânsito e transporte, como está escrito em português cristalino no artigo 22, inciso XI. Ademais, a Lei Maior consagra a livre iniciativa como um dos princípios fundamentais da República desde o seu artigo inaugural. As prefeituras podem – na verdade, devem – apenas regulamentar a prestação do serviço, tal como já é feito para uma miríade de atividades econômicas.

Tarcísio de Freitas é um servidor público preparado e experiente. Decerto sabe de tudo isso, além de contar, espera-se, com uma assessoria à altura do cargo que ocupa. Logo, a conclusão incontornável é a de que o governador paulista está fazendo o jogo político-eleitoral de Nunes, que há um par de anos tem sido um ardoroso oponente das empresas privadas que operam o serviço de mototáxi na cidade de São Paulo.

As razões para tanta oposição ainda são obscuras. Nunes alega preocupação com o eventual aumento do número de mortes no trânsito da metrópole caso o serviço seja liberado. Ora, a precária – para não dizer ausente – fiscalização de trânsito nas vias públicas de São Paulo e o crescente número de mortes entre motociclistas, a despeito da proibição do mototáxi, não corroboram a prudência apregoada pelo prefeito.

A realidade econômica, como sói acontecer, impõe-se aos desígnios políticos. Há demanda para o serviço de mototáxi em São Paulo porque outros modais simplesmente não atendem às necessidades dos cidadãos, sobretudo os que vivem nas periferias da cidade. Estes já recorrem aos mototaxistas informais, vale dizer, clandestinos. Muito melhor será regulamentar a oferta do serviço e fixar critérios de segurança para condutores e passageiros, com fiscalização firme e diligente da Prefeitura.

O Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que o mototáxi não pode ser arbitrariamente proibido, e sim regulamentado pelo poder municipal. O que se espera das autoridades é um compromisso com soluções sérias e estruturadas para os desafios do transporte urbano em uma cidade como São Paulo, e não seu envolvimento numa barafunda jurídica na qual o interesse dos paulistanos que precisam se locomover todos os dias não parece ser prioridade.

Tarcísio de Freitas deveria ter vetado a lei. Mas, ao dar aos prefeitos um poder que não lhes cabe, o governador cometeu um erro jurídico crasso, aumentou a confusão e, como se nada disso bastasse, ainda tisnou suas credenciais liberais.

Disputa entre Executivo e Legislativo ultrapassa o embate ideológico

Correio Braziliense

A polarização em Brasília não se resume a divergências programáticas entre governo e oposição. Trata-se de um conflito de natureza institucional

Os fatos mais recentes na política brasileira vêm carregados de apreensões. O impasse em torno do ajuste fiscal, cujo último lance foi a derrubada do aumento do IOF pelo Congresso, mergulhou a relação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com a Câmara e o Senado em uma espiral de estresse que nos traz maus agouros. O país claudica em relação ao equilíbrio fiscal porque o Executivo não quer cortar gastos e o Congresso não aceita aumento de impostos. A conta não fecha.

A derrubada do decreto que aumentava o IOF também tem outras variáveis: lobbies poderosos de empresas e setores econômicos beneficiados por isenções e benefícios tributários, um embate surdo com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino em razão da falta de transferência de emendas parlamentares impositivas, e, como era de se esperar, um embate entre Lula e a oposição, que serve de objeto de barganha para o chamado Centrão e antecipa a disputa eleitoral de 2026.

Essa polarização em Brasília não se resume a divergências programáticas entre governo e oposição. Trata-se de um conflito de natureza institucional entre o Executivo e o Congresso cuja lógica não é simplesmente ideológica, mas orçamentária e de poder. Diferentemente do que seria um ambiente democrático saudável, o embate congestiona o ambiente institucional, em que as duas Casas do Congresso operam com autonomia quase absoluta sobre o orçamento público, desequilibrando a relação entre os Poderes.

A face mais visível desse choque é o paradoxo fiscal imposto pelo Legislativo, que resiste a qualquer tentativa do governo de aumentar receitas por meio da elevação de tributos ou da reversão de isenções, ao mesmo tempo em que patrocina a aprovação de medidas que ampliam gastos públicos e reduzem a arrecadação, muitas vezes por meio de "jabutis" incluídos de última hora em projetos aparentemente técnicos ou consensuais.

É flagrante esse procedimento, por exemplo, no caso da regulamentação da energia eólica offshore. Sob influência de grupos econômicos, parlamentares inseriram dispositivos que fragilizam a regulação, aumentam subsídios cruzados e encarecem tarifas para o consumidor, a pretexto de um suposto (e falso) incentivo à transição energética. Na prática, são emendas que beneficiam lobbies específicos à custa do contribuinte e sem coerência com o discurso de responsabilidade fiscal.

Outro fato desestabilizador das relações entre os Poderes é a anabolização de emendas de relator e das transferências especiais, por meio das quais o Congresso consolidou um poder orçamentário informal que esvazia a função típica do Executivo de planejar e executar o Orçamento. Isso transformou o Legislativo em coproprietário da execução orçamentária e o Planalto, em refém de negociações frequentemente não transparentes.

A aprovação de gastos sem contrapartida ou critério nacional amplia o deficit público e dificulta políticas redistributivas estruturadas, tornando o ajuste fiscal mais difícil. O resultado é um ambiente em que não há consenso nem sobre o tamanho do Estado, nem sobre quem paga por ele. Além disso, alimenta-se a armadilha da judicialização da política toda vez que o governo recorre ao STF para contestar medidas aprovadas ou defender prerrogativas do Executivo. Embora legítimo, esse recurso excepcional, pela frequência que vem ocorrendo, corrói o equilíbrio entre os Poderes, além de atrair o STF para o centro da disputa com o Legislativo. 

O direito de viver e estar vivo

O Povo (CE)

Neste ano, o tema da Parada da Diversidade é justamente o envelhecimento: no País que mais mata, projetar o futuro segue difícil

Após oito anos do assassinato da travesti Dandara dos Santos, a Justiça sentenciou que houve omissão do policiamento do Estado do Ceará e condenou-o, em primeira instância, a indenizar em R$ 50 mil a família de Dandara. Vítima de transfobia e assassinada em 15 de fevereiro de 2017 no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, o caso de Dandara estremeceu o Brasil e o mundo e escancarou, mais uma vez, os horrores que a comunidade LGBTQIA enfrenta no cotidiano.

Coincidência que a decisão "simbólica" — como definida pela advogada da família de Dandara, Christiane Leitão — tenha ocorrido na semana do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA , celebrado neste sábado, 28 de junho.

Por outro lado, o direito de viver não se limita ao de estar vivo, mas principalmente ao entendimento básico de existir por completo, gozando da tranquilidade para estudar, amar, divertir-se, passear, expressar-se e envelhecer publicamente. O fato da comunidade LGBTQIA seguir lutando por direitos tão simplórios — para quem sempre pode exercê-los plenamente — é mais um alerta para a crueldade à qual ela ainda é submetida.

Recentemente, os brasileiros se mobilizaram para assistir ao filme biografia do icônico Ney Matogrosso, Homem com H (Esmir Filho), a partir do qual tiveram contato com a materialização da bravura cotidiana de existir: na trajetória de Ney Matogrosso, nem a ditadura militar era tão amedrontadora quanto a impossibilidade de ser. E essa é a história de toda a comunidade, ontem e hoje.

Há, com certeza, avanços. No entanto, são passos infantes: foi somente há 12 anos, em 2013, que o casamento homoafetivo foi legalizado. Em 2015, puderam adotar. Apenas há sete anos, em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito das pessoas trans de mudar nome e gênero nos documentos sem necessidade de comprovar cirurgia de redefinição sexual ou tratamentos para mudança de gênero.

O problema dos direitos recentes é que eles são especialmente vulneráveis. Dependem do tempo de consolidação e implementação de políticas públicas efetivas. Mais ainda, dependem da transformação de uma sociedade adepta ao conservadorismo, acostumada à manutenção de lógicas antiquadas.

Não à toa, ainda há quem pregue que ser LGBTQIA é uma opção, ou, pior, uma doença. O Brasil, pelo Conselho Federal de Medicina, antecipou-se cinco anos à Organização Mundial da Saúde (OMS) ao retirar, em 1985, a homossexualidade do rol de patologias. Este é apenas um exemplo de como a sociedade tarda a acompanhar conquistas jurídicas.

O desfecho do caso Dandara simboliza a urgência de pessoas dessa comunidade enxergarem-se fora de contextos de violência. Neste ano, o tema da Parada da Diversidade é justamente o envelhecimento: no País que mais mata, projetar o futuro segue difícil. Para além de estar vivo, que a luta siga pelo direito de viver.

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