domingo, 21 de dezembro de 2025

Eu sou da América do Sul. Por Míriam Leitão

O Globo

Intensificação da presença militar americana na Venezuela eleva risco de intervenção e desafia o Brasil

A América do Sul vive neste fim de ano a tensão de uma situação militar de desdobramentos imprevisíveis. Os Estados Unidos instalaram seu maior porta-aviões, submarino nuclear, dez navios e tropas perto da região. Caças americanos sobrevoam áreas a 100 quilômetros de Caracas. O governo Donald Trump nem chega a alegar que está fazendo isso para defender a democracia, lembra o embaixador Roberto Abdenur. “Ele diz claramente que quer retomar os poços de petróleo que foram desapropriados de empresas americanas em tempos anteriores”. Abdenur acha que foi importante o Brasil se oferecer como mediador, ainda que não haja qualquer possibilidade de o governo americano aceitar.

Não há lado bom nesse conflito. Nicolás Maduro “é um ditador abominável”, define o embaixador. Por outro lado, “Trump é um alucinado e inconsequente”. O assunto deve ser visto pelo lado do Brasil. É princípio básico da diplomacia brasileira, desde sempre, querer a região à nossa volta livre de conflito e de interferência militar de potências estrangeiras. Foi iniciativa brasileira, em 1986, a criação da Zopacas, Zona de Cooperação Pacífica no Atlântico Sul, à qual aderiram tanto os países da América do Sul, quanto os da Costa da África. A ideia era evitar a presença de forças estrangeiras no local e sobretudo a de armas nucleares. O que pode acontecer agora com todas essas tropas cercando um país vizinho?

—Não acredito em invasão, porque a Venezuela é um país muito grande e exigiria um número ainda maior de militares americanos. Imagino que ocorram incursões limitadas. Ações tópicas para capturar Maduro. A entrada de tropas em Caracas seria difícil, porque é uma cidade grande, difícil, que fica num plano mais alto do que a costa. E Maduro está se escondendo bem. Trump é imprevisível, mas é inacreditável deslocar uma força militar extraordinária como essa para não fazer nada — calcula Abdenur, que já foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos, na China, na Alemanha e no Equador.

Até agora, o embaixador só vê um fato positivo para o país, a oferta do presidente Lula de ser o mediador do conflito.

— Acho muito bom que Lula tenha se apresentado para mediar uma solução. É improvável que Trump aceite, mas o simples fato de o presidente brasileiro ter se apresentado é importante. Esta situação internacional terrível, apesar de tudo, abre brechas, abre espaços para uma afirmação, para uma atuação mais ativa do Brasil. Lula está respondendo muito bem à situação. Ele não deve declarar-se favorável a Maduro, ele deve declarar-se em oposição à violação da soberania de um país sul-americano e a violação à situação de paz e segurança da América do Sul, bandeira pela qual o país milita há muito tempo.

O quadro é dramático. É na nossa vizinhança, Maduro não é defensável e nem uma intervenção militar com declarado propósito econômico. A Rússia declarou apoio a Maduro. O Brasil perdeu a parceria estratégica que tinha com a Argentina. O Paraguai fez um acordo ainda não entendido inteiramente com o governo Trump.

— Na guerra da Ucrânia, o Brasil tem a posição equivocada pró-Rússia, mas o presidente Lula não deveria abster-se de condenar qualquer ameaça de intervenção militar da Rússia nesse conflito. O caso da Venezuela pode tornar-se uma crise de impacto internacional muito mais ampla, que lembrará a crise dos mísseis em Cuba, nos anos 1960. Maduro é um ditador abominável, eu gostaria de vê-lo fora do poder e preso, mas a soberania do Estado da Venezuela é outra coisa. E Trump está ameaçando não por uma causa nobre, digamos assim, mas porque diz que vai recuperar o controle dos campos de petróleo.

Houve intervenções militares americanas na América Central e apoio aos golpes e ditaduras nas décadas de 60 e 70, mas uma presença militar nesta escala nunca houve. O porta-aviões Gerald Ford é o maior do mundo e se faz acompanhar por destróieres, submarino nuclear de ataque, aviões, caças do esquadrão de força de ataque marítimo, drones e helicópteros. Trump preparou-se para uma guerra.

Do outro lado, há um autocrata que realizou o que Jair Bolsonaro gostaria de ter conseguido. Atraiu as Forças Armadas, espalhou militares em postos importantes, deu a eles poder, solapou a democracia por dentro, eternizou-se no governo e organizou uma milícia numerosa, armando seus seguidores. O governo brasileiro terá que saber como agir.

 

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