domingo, 21 de dezembro de 2025

Genealogia do crime perfeito. Por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

O feminicídio é problema antigo, mas dele se falava pouco, fossem as vítimas ou as autoridades

O choque atual parece ter a ver com o fim de outra forma de violência, o silêncio

Epidemia (do grego "epi-demos") significa literalmente aquilo que incide de forma direta, sem mediações, sobre o povo. Por isso nomeia surtos inesperados de doenças infecciosas em várias regiões. Endemia, por outro lado, é a manifestação desse fenômeno de modo estável. Choque e perplexidade têm levado frações de público a falar de uma "epidemia" de feminicídios e violências contra as mulheres, talvez devido ao aumento extraordinário de casos, mas esse é um mal culturalmente endêmico. Sempre existiu como uma recorrência em graus variáveis, a depender da região.

O choque atual parece ter a ver com o fim de outra forma de violência, o silêncio. O problema é antigo, mas dele se falava pouco, fossem as vítimas ou as autoridades. É possível que fosse menor a avaliação estatística das ocorrências, porque a mulher se expressava menos, tanto no espaço público quanto no privado, e, quando podia fazê-lo, sua voz sujeitava-se a restrições e interrupções pela masculina. Isso não acabou, mas se enfraqueceu. Leis e movimentos feministas, como o Me Too, ajudaram as mulheres a tomar consciência de que a violência simbólica do silêncio produz cumplicidade.

Algo semelhante ocorreu quando os negros, até então objeto de ciência, começaram a articular posições contra o racismo. Nos anos 1950, um sociólogo espantava-se que quisessem falar de si, assim como fariam micróbios ao microscópio de um cientista. O bom objeto não berra. Isso valeria para indígenas e mulheres. A história revelou outra coisa: a emergência de intelectuais orgânicos da afrodescendência, dos povos originários e da condição feminina. Histeria, que a psiquiatria restringia às portadoras de útero (hysterion), é hoje a voz masculina da mídia (Raquel Paiva, em "Histeria na Mídia").

A violência radica na separação absoluta entre dois termos complementares de uma equação social: capital/trabalho, natureza/cultura, homem/mulher etc. O mais abstrato impõe-se como lei estrutural. Na dicotomia masculino/feminino, o patriarcalismo universaliza a submissão da mulher e faz disso política de Estado, como nas ditaduras islâmicas. Nelas existe posse, mas não amor às mulheres. Ódio à primeira vista de um fio de cabelo. Por quê? Por medo mítico, primitivo, da diferença.

Medo é a forma negativa do desejo.

Guardadas proporções e variáveis, o fenômeno se irradia. Num país de forte tradição espiritual como a Índia, são elevados os índices de estupros e feminicídios. No Brasil, há quatro feminicídios por dia, mas aqui a polícia e o Judiciário vêm sendo compelidos a atuar. E já se instituem laboratórios de discussão do flagelo.

Visto que nada se pode fazer como prevenção, os diagnósticos confluem para a adoção de punições mais duras, em geral ineficazes. O que há mesmo é um enorme trabalho educacional a ser feito desde os primórdios até a formação superior.

No âmago da questão está o lugar de fala: a voz autônoma da mulher pode desencadear a fúria narcísica do assassinato ou da agressão mutilante. A negação machista da palavra feminina já configura o crime perfeito.

 

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