Pela ótica triunfalista de José Aníbal, a derrota
de Serra é algo tão distante quanto as primárias no Estado de Wyoming e o que
há a fazer é refundar o PSDB a partir de Belém, Manaus e Teresina
Entre as muitas atividades do espírito humano
tocadas pelo condão da fantasia e da imaginação a hermenêutica eleitoral ocupa
lugar de destaque. Embora haja quem julgue ser possível uma ciência das
eleições, capaz de estabelecer a grande explicação que pulveriza interpretações
imperitas, a coisa segue sujeita a imparável jogo opiniático. Diga-se de
passagem que são tantas as dimensões associadas ao processo e ao resultado
eleitorais que, a depender do lugar no qual fincamos a ponta seca de nossos
compassos, isto é das nossas crenças, apostas e hábitos cognitivos, a geometria
que daí decorre é forçosamente variada.
A pluralidade das interpretações, contudo, não deve
ser vista em chave negativa. Se, por um lado, ela é incapaz de asseverar com
objetividade o sentido do que, de fato, se passou, por outro ajuda a elucidar
algo a respeito da natureza dos intérpretes. Em outros termos, por mais
estapafúrdia que seja uma interpretação, ela pode ser esclarecedora a respeito
do seu sujeito, ainda que seus predicados sejam pífios.
Todo este arrazoado veio-me à mente ao ouvir e ver
- e peço já desculpas pela abrupta passagem à vida como ela é - o ex-deputado
José Aníbal, do PSDB, em programa hipernoturno, a debater com o deputado
Cândido Vaccarezza, do PT, no domingo do segundo turno das eleições municipais.
Vale a pena proceder a uma etnografia breve do evento. Vaccarezza mal cabia em si.
Afetava um estado de graça tão pleno, que nele cabiam até mesmo manifestações
de prudência e humildade e, o que é extraordinário, o reconhecimento da
importância da oposição. Mas, se o caso é falar dos tucanos, observemos o
ex-deputado José Aníbal e o que, na altura, trouxe aos telespectadores.
Nada menos que uma visão triunfal do desempenho
tucano, foi o que José Aníbal proporcionou como exórdio de sua interpretação do
ato eleitoral. Segundo sua peculiar hermenêutica, houve vitórias tucanas por
todo o Brasil: Manaus, Belém, Teresina, Sorocaba e coisa e tal. Semblante de
vencedor, José Aníbal estava rejuvenescido por seu júbilo. Um espectador
desavisado o tomaria como o grande vencedor do dia. Em meio à estupefação
generalizada entre os jornalistas, diante de tanta euforia, o condutor do
debate lembrou a derrota em São Paulo. Derrota prontamente reconhecida, por
certo, mas com ares que não era com ele.
A hermenêutica de Vaccarezza, sem surpresa, fixava-se
no ato premonitório da escolha de Lula para a sucessão paulistana e no
desempenho do candidato Fernando Haddad. José Aníbal proporcionou o melhor da
noite, pois, instado a reconhecer que houve uma eleição na capital paulista e
de que nela as coisas não se saíram exatamente bem para suas hostes, procedeu a
uma anatomia da derrota. Ao fazê-lo, surpreendeu, pois admitiu o que todos
sabiam. Curiosa circunstância, na qual um efeito surpresa decorre quando alguém
diz o que todos já sabem.
José Aníbal foi preterido na sucessão paulista, em
virtude da razia imposta ao tucanato paulista pela candidatura de José Serra. O
"making of" geral da salsicha permanece desconhecido, mas o preço a
pagar pelo atropelo parece evidente. Para José Aníbal, a derrota de Serra é
algo tão distante quanto as primárias do Estado de Wyoming. Não só distante,
mas marcado com as tintas do inevitável. É exatamente aqui que ocorre o efeito
surpresa da admissão do que todos sabiam: como eleger um candidato apoiado pelo
prefeito Kassab? Como eleger um candidato, cuja investidura desorganiza, pelo
verticalismo da imposição do nome, uma das máquinas partidárias estaduais mais
fortes do país? As palavras duras emitidas ao prefeito, em particular, não
encontram paralelo na avaliação petista, pautada pela possibilidade futura de
aproximação com o PSD.
José Aníbal, com clareza límpida, tocou em dois
mistérios municipais da desrazão tucana. Ambos, por sua vez, associados à mãe
de todos os mistérios: José Serra obteve, há pouco menos de dois anos, 40
milhões de votos contra a candidata de um dos presidentes mais populares da
história do País. Em qualquer país razoavelmente democrático, isso o
qualificaria para liderar a oposição, com imensa legitimidade. O que se passou
é sabido: José Serra e seu partido jamais apresentaram ao País sua versão a
respeito do que o Brasil poderia ser, como alternativa ao que vem sendo sob
Dilma Rousseff.
É razoável supor que as dezenas de milhões de
eleitores que sufragaram Serra possuíam a expectativa de dispor de uma versão
distinta de país. Nesse sentido, pode-se afirmar que ocorreu uma variante
curiosa da tradicional prática do estelionato eleitoral. Prática comum entre
vitoriosos: lembremo-nos da eleição, pelo PMDB, de mais de metade da Câmara de
Deputados, em 1986, graças ao prestígio do Plano Cruzado. Logo a seguir ao
pleito, o plano foi desconstruído.
Tratou-se de um caso clássico de estelionato, já
que fundado na premissa de que os efeitos imediatos do Plano Cruzado seriam
seus efeitos permanentes. Vida que segue, outras formas de estelionato se
apresentaram na política brasileira. Todas elas caracterizadas pela traição,
por parte dos vitoriosos, de seus incautos eleitores. Mas o que dizer de
derrotados que deserdam seus apoiantes?
O não impacto do julgamento da ação penal 470 nas
últimas eleições mostra a desorientação tucana ao insistir que a agenda moral é
suficiente para fixar uma agenda alternativa. Agora é, a seguir José Aníbal,
refundar o partido a partir de Belém, Manaus e Teresina. José Serra, pelas artes
de algum polimorfo perverso, periga ganhar a presidência nacional do PSDB.
Dilma Rousseff tem razões para sorrir quando pensa em 2014.
Renato Lessa é professor de Teoria Política da UFF,
pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e
presidente do Instituto Ciência Hoje
Fonte: Aliás/O Estado de S. Paulo
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