Motivado pela última obra de Spielberg, voltamos a refletir sobre o episódio da aprovação da 13ª emenda à Constituição americana como um exemplo paradigmático de um líder político que foi capaz de aproveitar uma janela de oportunidade para mudar dramaticamente a história do seu país. Embora o Partido Republicano, do presidente Abraham Lincoln, desfrutasse da maioria de cadeiras nas duas Casas Legislativas, não reunia votos suficientes para aprovar no Senado a reforma que acabaria com a escravidão. O cenário politico era de Guerra Civil e, mesmo assim, Lincoln conseguiu unificar as mais variadas facções do Partido Republicano com o argumento de que o fim da escravidão seria condição necessária para que a guerra acabasse. Lincoln sabia que, com a rendição do sul, seria praticamente impossível manter seu partido unido em favor da aprovação da emenda.
Presumindo que todos os republicanos votariam a favor, ainda seria necessário convencer 20 senadores democratas que não haviam sido reeleitos. Esse foi o contexto em que Lincoln enxergou uma janela de oportunidade ao oferecer empregos públicos aos senadores democratas em troca de apoio. No jargão da ciência política, Lincoln fez uso de patronagem. O presidente cogitou comprar apoio com dinheiro vivo, mas tendo sido desencorajado por assessores, decidiu então enviar intermediários de sua confiança para negociar a adesão dos senadores em troca de empregos. Não tendo sido plenamente bem sucedido, Lincoln foi obrigado a "sujar" as próprias mãos, negociando diretamente o apoio de alguns senadores relutantes. Após a aprovação da emenda, Lincoln se reúne com a comissão de confederados do sul e negocia os termos de rendição, que levou ao fim da Guerra Civil e o fez entrar para a história.
No caso brasileiro, o presidente Lula percebeu, logo no início do seu primeiro mandato, que seria necessário encontrar formas de cortar custos e aumentar receitas. A opção foi reformar os sistemas tributário e previdenciário, agenda que criaria controvérsias inclusive no seu próprio partido. Dada a condição de minoria, o governo Lula optou por uma via rápida para a realização de sua agenda, "comprando" o apoio de partidos (não apenas de dentro, mas também de fora da coalizão).
Por que episódios semelhantes levam a resultados díspares?
Essas reformas só seriam aprovadas com os votos dos dois principais partidos de oposição. A reforma da Previdência, por exemplo, foi aprovada com 357 votos na Câmara dos Deputados em dois turnos. Porém, o governo recebeu apenas 213 votos dos membros de sua coalizão, um número muito menor do que os 308 necessários. O próprio PT enfrentou 4 defecções e 7 abstenções. O PSDB e PFL, além de compartilharem dessa agenda de reformas, foram fartamente recompensados com a execução de mais de 75% das emendas individuais ao Orçamento da União em 2003. Como a grande maioria de ministérios (60%) foi monopolizada pelo PT e os recursos de emendas ao Orçamento foram direcionados para os partidos de oposição, restou ao governo Lula montar um esquema paralelo e ilegal de compensação para os membros de sua própria coalizão, mantendo-os com isso unidos e disciplinados.
Os principais envolvidos no esquema, apelidado de mensalão, foram julgados culpados e exemplarmente condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, o procurador-geral da República acaba de encaminhar para a primeira instância do Ministério Público Federal de Minas Gerais o depoimento do principal articulador financeiro do mensalão, Marcos Valério, que acusa o ex-presidente Lula de ter recebido recursos do mesmo esquema. Se as investigações prosseguirem e mais evidências da participação do ex-presidente forem encontradas, Lula corre o risco de enfrentar ainda mais custos reputacionais e/ou judiciais, além de "sair" da história pelo seu legado de envolvimento em corrupção.
Por que episódios de compra de votos, aparentemente semelhantes, podem apresentar resultados tão díspares para o legado de seus governantes?
Uma possível resposta atribui as ações desviantes a uma eventual nobreza dos fins perseguidos. Ou seja, enquanto Lincoln foi capaz de acabar com a escravidão e colocar um ponto final na Guerra Civil, trocando apoio político por cargos públicos, o governo Lula conseguiu basicamente aprovar poucas reformas e governabilidade junto ao Legislativo fazendo uso do mensalão. Tal receita é perigosa, pois relativiza os malfeitos. Lincoln fez uso de patronagem, mas o governo Lula extrapolou, além da patronagem também fez uso de dinheiro público em quantias vultosas.
Outra resposta estaria relacionada à capacidade das instituições de freios e contrapesos de fiscalizarem e punirem desvios de governantes. Lincoln recorreu a ferramentas questionáveis de governo há 150 anos, quando o acesso à informação era restrita, a qualidade da burocracia pública embrionária, a independência das instituições de controle débil, enfim, em um momento histórico de construção do estado de direito muito diferente e incipiente. Nas democracias atuais, tanto a opinião pública quanto as instituições de controle são mais vigilantes a violações da moralidade pública. A barganha política sem princípios gera mais custos.
Uma terceira explicação estaria diretamente relacionada à diferença de instrumentos de governo e poderes constitucionais e de agenda do presidente. O presidente Lula dispunha de fortes ferramentas para implementação de sua agenda política no Legislativo (tais como medida provisória, poder de urgência, poderes orçamentários etc). Portanto, o uso de ferramentas não legais ou meios desviantes para a implementação de sua agenda se torna ainda menos escusável.
O sistema presidencialista americano, desde Lincoln até hoje, caracteriza-se por ter um Executivo com parcos poderes unilaterais de governo. Além do mais, Lincoln teve que lidar com um Congresso poderoso, especialmente no século XIX, e sob Guerra Civil que ameaçava o projeto unificado de república. É surpreendente que o governo Lula não considerasse suficientes os meios constitucionais de imposição de seu projeto de governo e ferisse, com isso, a imagem histórica de ética que seu partido político apregoou desde sua fundação.
Carlos Pereira é professor titular na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape)
Fonte: Valor Econômico
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