• O PSDB se enfileirou na bica d'água controlada pelo PMDB
- Valor Econômico
José Serra acredita na fada Morgana. Com ela, produziu a melhor miragem da crise, desde a Agenda Brasil. O senador acabara de narrar a saga de um predestinado em entrevista ao Roda Viva, quando engatou sua utopia: uma caravana de beduínos estava no deserto, prestes a entregar os pontos, quando aparece a fada Morgana e lhes mostra um oásis adiante. É uma miragem, mas é por ela que continuam a andar. No meio do caminho, encontram uma bica.
A utopia de Serra é antiga. Nova é a disposição de incorporá-la às miragens com as quais os tucanos se locomovem nesta crise. Morgana fez pelo menos duas paradas antes de povoar o imaginário do senador tucano. Saiu dos escritos do crítico marxista polonês Leszek Kolakowski e foi abrigada naqueles de Albert Hirschman, economista alemão que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, outro discípulo, chamou um dia de 'otimista cético'.
Serra reconstituiu a trajetória da fada em artigo publicado antes de o PSDB chegar ao poder ('Veja', 01/08/90). Valeu-se de Morgana para explicar por que a mitificação de resultados futuros pode fazer com que a sociedade renove sua disposição a sacrifícios e encontre caminhos não previstos.
A crise é a bica d'água de Serra, mas o PMDB domina sua vazão. Escanteado do duelo entre o senador Aécio Neves e o governador Geraldo Alckmin, Serra percebeu antes de quaisquer de seus correligionários o atalho que a aproximação com o PMDB lhe oferece para a miragem exibida na segunda-feira - "Meu objetivo na vida é dar um futuro para o Brasil".
Aécio enfraqueceu-se sem Minas Gerais, mas mantém o controle de uma máquina que, para além da bancada desgovernada da Câmara, é capaz de produzir feitos como a filiação do sexto governador ao partido, Pedro Taques (MT).
Alckmin, ao contrário dos outros dois, tem um governo nas mãos. Além dos canteiros de obras, muitos dos quais geridos por empresas alvejadas na Lava-Jato, está melhor aparelhado para a narrativa pós-crise, a de um país sem sobressaltos.
A aliança com o PMDB é a única chance de Serra enfrentar ambos. A estratégia já parecia delineada desde o início do mandato, mas foi encorpada com a crise. Seu gabinete no Senado já havia sido transformado em usina de projetos acolhidos com celeridade não apenas pelos presidentes das duas Casas quanto pelo próprio governo.
Em entrevista à Raquel Ulhôa, do Valor, o senador detalhou uma agenda que vai do gabinete do presidente da Casa, Renan Calheiros, até à cabala de assinaturas, pessoalmente, de cadeira em cadeira. "Trabalho bastante", resumiu o senador para o telespectador que parecesse desavisado.
Citado da esquerda (o sociólogo Francisco de Oliveira em Valor, 31/7) à direita (o industrial Paulo Cunha, em "O Estado de S.Paulo", 10/9), como o único a ter um rumo para o país, Serra resolveu dar forma a uma miragem que extrapola, com folga, o Ministério da Fazenda. Na travessia do seu deserto é capaz tanto de ignorar a Casa das Garças ("O Banco Central é do governo, não é uma filial do Vaticano") quanto de reafirmar o primado da tecnocracia ("A direita no Brasil é tão populista quanto a esquerda").
Sua narrativa das manifestações, a que aderiu pela primeira vez, o perfila como antídoto contra a pecha golpista de um eventual governo de transição que, 'por patriotismo', o PSDB venha a compor. Testemunha ocular do ocaso de João Goulart e Salvador Allende - além da renúncia de Richard Nixon ("tenho vocação para momentos difíceis") -, lembra que aqueles governos, dos quais foi partidário, dividiram seus países.
O senador diz que este não é o caso da presidente Dilma Rousseff, que tem maioria contra, mas não delega a aferição de sua legitimidade ao Datafolha. Ao responder à pergunta de Cristiano Romero, do Valor, sobre as razões pelas quais o governo teria perdido legitimidade, resume: "Porque perdeu o rumo". Para o telespectador que resistira até ali não havia dúvidas: aquele 'alguém' para dar rumo, que tanto desgastou Michel Temer, estava ali, no centro da roda.
Dois anos mais velho que Serra, o vice-presidente foi candidato ao centro acadêmico XI de Agosto, da faculdade de direito da USP, no mesmo ano em que o senador disputou a União Estadual dos Estudantes. Quando veio o golpe, Temer já advogava, longe da Ação Popular, de Serra, mas naquele 1962, compuseram-se.
Voltariam a se encontrar no governo Franco Montoro, quando o vice-presidente conheceu o estilo que marcaria a carreira do senador. Temer foi procurador-geral do Estado e secretário de Segurança. Serra era titular do Planejamento, mas se ocupou do governo e delegou os planos para Montoro. Além do governo, Serra parece ter herdado do governador admiração pela perseverança do líder da democracia cristã venezuelana, Rafael Caldera, que começou a tentar ser presidente em 1947 e conseguiu, depois de quatro tentativas, 22 anos depois.
O Bandeirantes do início dos anos 1980 é um palácio de conto de fadas se comparado ao indomável PMDB de hoje. A aproximação de Serra com pemedebistas, no entanto, foi suficiente para soar o alarme no PSDB. Na nota do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a renúncia da presidente Dilma Rousseff aparece como uma miragem da fada Morgana. Foi precedida da afoiteza de Serra e da adesão precursora da senadora Marta Suplicy ao PMDB, uma bica seca na rota tucana rumo à eleição municipal em São Paulo.
A nota marca ainda um momento em que o PSDB, trincado em sua interlocução empresarial pelo endosso à pauta-bomba, assistiu inerte ao pacto da cumeeira. A reabertura do crédito em bancos oficiais mostrou que, se algum efeito as manifestações tiveram sobre o acordo em curso entre o Palácio do Planalto e as elites empresariais, foi o de ampliá-lo, sempre sob mediação do PMDB. Não parece coincidência que a nota de Fernando Henrique tenha sido sucedida pela decisão de Aécio de abandonar o discurso de antecipação das eleições e buscar a reaproximação com os pemedebistas.
A unidade tucana talvez não chegue nem mesmo a ser uma miragem, mas o discípulo de Morgana parece ter razão sobre os caminhos que a fada é capaz de abrir. No momento, os beduínos do PSDB parecem todos enfileirados na bica d'água controlada pelo PMDB.
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