O balanço dos 44 anos durante os quais a política tem sido o centro das minhas atenções, antes de militante e político, depois de estudioso e professor, permite-me o recurso luxuoso à nostalgia. Por outro lado recusa-me o direito à ingenuidade. Por essa razão não compartilho celebrações (nem as de boa-fé) que se fazem diante dos fatos e factoides que vieram a público no, a meu ver, factualmente obscuro e politicamente obscurantista dia 17 de maio de 2017.
Pessoas e grupos crentes no advento de uma nova era, isenta de corrupção política, que já se misturavam (por apoliticismo, mais do que por afinidade), a outras pessoas e grupos nostálgicos da ditadura, em protestos de rua e nas redes sociais desde 2014/2015, hoje já concordam pontualmente, na rejeição ao Governo Temer, com aquelas pessoas e grupos esperançosos de um retorno ao status quo político superado pelo impeachment de Dilma Roussef. Formou-se, por acidente, ou não tanto assim, curiosa coalizão de veto ao esforço pacificador do governo de transição. E na hora em que o governo balança e, a princípio, migra, de súbito, de um momento de consolidação para uma crise que pode ser terminal, afinidades eletivas entre os dois polos da escalada de radicalização política que persiste há três anos no País fazem ecoar o “Fora Temer” como se fosse um clamor nacional. Clamam estridentemente os que na esquerda gostariam de revogar a Lava-Jato, mesmo sabendo que a queda do governo, se ocorrer, será obra, não da oposição de esquerda ou de movimentos sociais, mas da força daquela operação. Alimentam o mesmo bordão, embora com menos alarido e convicção, antipetistas e antilulistas seguidores exaltados da Lava-Jato, mesmo vendo que a queda do governo abre brecha para os “inimigos” voltarem ao jogo do poder que lhes parecia inalcançável após as delações das primeiras semanas desse maio meio agosto.
Na contramão desse coro excêntrico, persuade-me a ideia de que o virtual fim do governo parlamentar, que talvez esteja consumado (ou quase) quando esse texto for publicado, expressa uma derrota da política. Como tal representará, para além da queda de um governo impopular, um obstáculo à reconstrução do centro político democrático, obra complexa que seguia curso sinuoso desde o ano passado, após sua destruição durante a guerra pelo controle do Estado, travada a partir da eleição presidencial de 2014.
Tornou-se lugar comum dizer que a sociedade brasileira está dividida de modo radical entre duas posições políticas, como numa disputa entre torcidas fanáticas. Para alguns mais ligados em jargões teórico-políticos, é direita x esquerda, elite x povo ou neoliberalismo x política social. Em redes sociais há traduções ainda mais simplórias dessa narrativa, como confronto indigesto entre “coxinhas” e “mortadelas”, ou duelo pessoal entre Moro e Lula. Esses modos de exprimir a mesma coisa refletem um “modo de pensar” de claques mais ou menos organizadas e de pessoas fidelizadas por algum tipo de dogma, carisma, ou tabu. Identificar isso com a percepção do povo, ou mesmo do eleitorado é, no mínimo um exagero e, no fundo, uma mistificação. Quem usa de boa vontade para olhar e escutar além do seu redor, de prudência para avaliar o que vê e ouve e de autonomia para pensar com a própria cabeça repara que enquanto as brigas de torcida se acirram, mais pessoas “comuns” delas tomam distância e anseiam por uma solução conciliadora da crise política. Esse tipo de saída permite tratar de problemas públicos sem comprometer, como se tem feito, relações profissionais, de vizinhança e amizade e até o convívio em ambientes familiares. A recusa ao espírito de claque não é necessariamente uma atitude política “alienada”. Compartilham-na pessoas que possuem variados níveis de instrução formal, informação e compromisso político. Penso que é o terreno social sobre o qual se pode reconstruir um centro democrático no Brasil.
Ocorre que há uma representação do modo maniqueísta de pensar o momento político que, ao contrário das que listei acima, parece ter mais conexão com a percepção das pessoas comuns: a luta do “Santo Guerreiro” (a Lava-Jato) contra o “Dragão da Maldade”, o sistema político. Ela sugere que estaríamos no limiar de uma vitória do bem, com a submissão da imperfeita democracia mundana e dos seus malditos corpos representativos a desígnios e ritos sumários de uma suposta “vontade geral”. Essa, por sua vez, seria guiada, além de pela fé, pela economia política ligeira de formadores de opinião para os quais violência urbana, caos na saúde e educação, inflação, recessão e desemprego seriam meros efeitos colaterais da corrupção. Daí que, como pontificam os arautos da faxina, uma assepsia radical no sistema político teria efeitos demiúrgicos. A antevisão de um quase paraíso moral e social, alcançado pela vitória do combate sem tréguas à corrupção, “doa a quem doer”, legitima meios excepcionais de investigação e punição, assim como justifica sacrifícios para pagamento à vista de todos os preços sociais, inclusive o de estancar uma incipiente recuperação econômica ao implodir o “malévolo” sistema político que, bem ou mal, pode viabilizá-la, numa democracia.
O eco (momentâneo, espero) dessa perversa fantasia no imaginário de ampla parte da sociedade esconde, sob aparências de novidade, a reiteração extremada de um velho modo de pensar que está na base de aventuras jacobinas, autoritárias, ou fundamentalistas que, na história política brasileira, afirmaram querer revogar o pragmatismo conciliador de nossas elites políticas, mas quando, por vezes, conquistaram o poder do Estado ou de governo agiram para exercer tutela e/ou para angariar clientela onde reinava a conciliação. O pragmatismo conservador e liberal (não fundamentalismos doutrinários, como o neoliberal) deu-nos à luz como Estado e Nação, conciliando o Estado e a representação política - que civilizaram a sociedade - com o ethos comunitário a um só tempo rude e cordial dessa última, vindo da experiência de nossa formação social. Tal elitismo civil, que se conservava moderadamente atento aos temas de reforma social sem contrapô-los às instituições liberais, quando exposto ao contexto virtuoso que ligou a luta democrática dos anos 70 e 80 à Carta de 88 achou, na nova feição do Ministério Público, um de seus modos de conversão à condição de uma força democrática. Decerto não foi o MPF a única instituição desenhada na Carta para controlar as variadas modalidades empíricas de exercício arbitrário ou criminoso do poder político. Mas nenhuma melhor do que ela exibe a inédita possibilidade de fazê-lo em proveito, não de outros particularismos, de corporações ou grupos políticos que se achem em eventual colisão com os governos, mas em proveito dos cidadãos de uma República definida como um Estado Democrático de Direito, definição que já registra a ultrapassagem da concepções elitistas da política e do direito e projeta essa ultrapassagem como processo aberto ao que vier no futuro.
Essa nobre instituição ameaça desviar-se de seu mister republicano e democrático - que vem cumprindo com zelo e eficácia, durante as últimas décadas - pelo modo corporativista e obscuro de sua ação ao conduzir a delação prodigamente premiada de proprietários de uma corporação empresarial que se fez gigante em tempo recorde, graças, além de agressividade nas relações de mercado, também ao auxílio de irresponsabilidade e corrupção estatais.
Estivemos diante de um inusitado modo de agir do MP que surpreende e suscita perguntas que não querem calar. Por que o uso, nesse caso específico que envolvia o Presidente da República, de um rito mais sumário para viabilizar a delação, quando o senso de responsabilidade institucional recomendava justamente que se usasse o mais cauteloso? Por que uma operação que se autodenomina “controlada” foi tão meticulosa e certeira para viabilizar flagrantes e tão descuidada na checagem posterior da gravação supostamente mais comprometedora, conforme a própria PGR admitiu depois de já feito o estrago político e institucional? Como aceitar a explicação de que a incúria se deveu ao intento de preservar o sigilo da operação se, na prática, o sigilo já não havia mais quando o Ministro Fachin recebeu o pacote? Nova incúria seguiu-se à primeira e deu lugar ao vazamento? Vazamento, aliás, dessa vez duplamente seletivo, do conteúdo e do receptor privilegiado, um jornalista de O Globo que deu o furo não se sabe se por escolha de quem vazou ou se pelo receptor ter sido gentil ou formalmente aconselhado por quem sabe o caminho das pedras a seguir a máxima futebolística de Gentil Cardoso: “Quem pede, recebe; quem se desloca, tem preferência”.
Essas nuvens já carregam bastante o ambiente, mas ainda têm a companhia de outra, que suscita pergunta adicional, agora sobre o fato de ter a dupla de empresários safos lucrado ao especular no mercado cambial e na bolsa a partir de informações privilegiadas derivadas da condição de delatores que colaboravam com os investigadores em tempo real. Quer dizer, a metodologia adotada implicava em prévio conhecimento dos delatores sobre o momento de deflagração da operação da qual eram participantes e não só informantes. Esse privilégio adicional, somado à prodigalidade dos prêmios formais da delação, torna excepcional o caso dos sortudos irmãos Batista e deixa no ar a pergunta: vale a ideia de punir corruptos, doa a quem doer, mesmo que para isso se deixe porta aberta também à de que, em certos casos - especialmente naqueles em que todas as partes são mais relevantes - o crime compensa?
Pouco altera, para o que vai ser adiante analisado, o ultimatum do MPF à JBS fixando condições pecuniárias duras para que se celebre um acordo de leniência. Mesmo veraz, ele não remediará o estrago político causado pelo tratamento voluntarista e heterodoxo, para dizer o mínimo, que a instituição deu à delação premiada dos seus proprietários. Assim como não anula o tratamento privilegiado e comparativamente injusto, em termos econômicos e de abstenção penal, concedido a esses delatores. Bois gordos foram postos à frente do carro da política, de modo a levá-lo a parar, após um desvio de rota, no rumo de um pasto ignorado.
À parte as controvérsias habituais sobre intenções e motivações, bem como sobre a validade ética e a eficácia prática de tais ou quais técnicas de investigação policial, o timming e a metodologia da operação levaram a ação da Procuradoria-Geral de República a assumir, objetivamente, o risco de provocar uma virtual queda de um governo de transição constitucional que naquele momento atuava, a duras penas, nos limites permitidos por circunstâncias herdadas e novas e, também, pela precária qualidade dos valores morais da elite política que acessou o poder dentro, também, dos marcos constitucionais. Tal governo, de manifesto caráter parlamentar, impôs-se as missões de restabelecer a governabilidade política em interlocução com o Congresso e de reverter a recessão econômica e o desemprego que se radicalizaram quando essa governabilidade faltou, a partir de 2015. O cumprimento até então exitoso da primeira missão e os ainda tímidos e ambíguos sinais de encaminhamento da segunda foram suspensos, quem sabe revertidos, pelo uso inédito de um bisturi mais cortante, cujo manejo deve estar, constitucionalmente, condicionado ao escrutínio do Poder Judiciário.
Salvo a hipótese de inflexão também na conduta até aqui sóbria do Ministro Fachin, parece que o STF foi, mais uma vez, colocado diante do fato incontornável de que não poderia deliberar livremente sobre a homologação da delação relâmpago, dado o mais que provável e, afinal, consumado vazamento do conteúdo das informações para veiculação por medias ávidos por acessá-las para antecipadamente julgar, mais do que para informar. Mas ainda não se sabe ao certo se e como o STF deu consentimento prévio ao até então inédito script procedimental adotado pelo MPF para a obtenção de provas nesse caso. Mais intrigante ainda é que, no cumprimento da agenda do ministro-relator, o levantamento do sigilo de um processo que continha fatos que já haviam virado noticia levou mais tempo do que a grave decisão de autorizar a investigação formal da pessoa do Presidente da República. É intuitiva a conclusão de que a parte da opinião pública que pede assepsia para já, além de pautar, via mídia, os movimentos do Ministério Público, também exerce influência sobre decisões tomadas no âmbito do STF, mesmo quando estão em jogo delicadas relações institucionais. De todo o modo, o STF não transpareceu na cena com o protagonismo supremo que dele se espera em situações nas quais uma deliberação sua repercute fortemente na grande política.
O lastro social para tão espaçosa e perigosa incursão do MPF e da Polícia Federal no âmago da grande política provém da recente legitimação social da vocação de órgãos policiais para ocupar o lugar de justiceiros e da também recente adesão do comando do MPF à imagem do santo guerreiro, que já era abertamente assumida pelos mais conspícuos membros da corporação no âmbito da Lava-Jato. À diferença do juiz Sergio Moro, cuja moderação judicial aprimora-se à medida em que a operação entra num momento que exige também maiores sensibilidade e responsabilidade políticas, os procuradores de Curitiba seguem pregando, obstinadamente, com sotaque plebiscitário, o reconhecimento da Lava-Jato como guardiã plenipotenciária da ética republicana e, como tal, o lugar de mais relevante e virtuosa instituição nacional. A esse figurino e a esse programa adapta-se, paulatinamente, a conduta prática do Procurador Geral da República, por decisão própria ou por livre e espontânea pressão exercida por setores de um quadro corporativo que ele parece não liderar a contento.
O chefe do MPF agiu à base do bateu levou, método que já vinha testando, sem que outras autoridades da Republica se expusessem ao risco de serem censuradas pelo senso comum por apontarem em público e interpelarem, republicanamente, a ousada esgrima praticada em final de mandato pelo mais alto prócer de uma instituição relevante. Houve, é claro, a conspícua exceção do Ministro Gilmar Mendes. Porém suspeito de parcialidade pelos imparciais e odiado por ambas as turmas que se digladiam em redes sociais, não pôde se fazer ouvir o bastante na República emparedada pelo maniqueísmo. Parece estar perdendo a parada, no STF e fora dele.
O Dr. Janot moveu-se como um Deodoro sem farda. Que ordem política se espera ver brotar dos escombros da atual, se a queda do governo Temer for mesmo o desfecho desse grave momento crítico? O presumido drible no Poder Judiciário e o desmonte de um Executivo que agia em consórcio com o Legislativo imobilizarão, na prática, os poderes moderadores reais de que se dispõe para levar o Pais a um porto mais seguro até as eleições de 2018? Nada é certo, pois é missão da política desmanchar pratos feitos e achar soluções quando parece sofrer xeque-mate. Mas no mínimo fomos mergulhados de novo na incerteza e se a pinguela cair a disputa do poder tornado mais provisório queimará nas mãos de um Legislativo solteiro e alvo de contestação pública. Entendimentos de bastidores que, logicamente, seriam necessários para cumprir a tarefa, levariam a uma solução melhor, em termos de confiabilidade social e eficácia política, do que a do arranjo montado para o governo Temer? Suspeito que não.
Ou será que a solução passaria por apagar as luzes dos bastidores congressuais e transferir a disputa para urnas também carentes de luzes e premidas pelas urgências da crise? Essa tem chance de se resolver numa eleição direta travada sob desordem econômica refundada e sabe-se lá que casuísmos políticos de urgência? Será como montar arenas para claques movidas a ódio e para outsiders movidos a demagogia, quando o encontro da solução requer uma racionalidade política e econômica que só medra quando conflitos são mediados, condição que há três anos não temos plenamente, mas da qual voltamos agora a nos distanciar mais.
Fora dessas hipóteses, há a do aumento do protagonismo judiciário, talvez mais provável e não à toa a preferida das organizações Globo, mas também até mais benigna, do ponto de vista de evitar, a curtíssimo prazo, um esgarçamento ainda maior das instituições democráticas para o qual a campanha de desestabilização da mesma Globo já contribui bastante. Mas o que essa solução supostamente moderada nos aponta, como ponte para 2018? No mínimo a perda mais acentuada, pelo Judiciário, do seu já arranhado papel como instância arbitral, em face do envolvimento direto de alguém seu na gestão do governo em período de crise e pré-eleitoral. O prejuízo institucional só não seria maior que o desastroso uso simbólico da Justiça por um quadro dela migrado para o âmago de uma política demagógica que não ousa dizer seu nome.
Opção menos insólita e menos radical - embora se constitua também em precedente perigoso - seria o protagonismo judiciário ater-se a assumir uma curtíssima interinidade para convocar o processo de busca de solução para o mandato tampão, em caso do Congresso a ela renunciar por se ver impedido de exercer essa sua prerrogativa constitucional pela força dos argumentos e dos veículos de pressão da suposta “vontade geral”. Mas se essa vontade geral/global tivesse o poder de vetar os políticos até como articuladores da solução, por que motivo aceitaria que fossem, eles próprios, a solução? Mesmo que totalitários sejam muito poucos entre os adeptos da faxina, não é provável que esses últimos, sendo vencedores na operação contra Temer, permitam, depois dele, uma solução que revigore a Weimar tropical que denunciam e desestabilizam. É mais provável que o processo político, se se render ao monitoramento pela lógica investigativa e midiática, produza como solução alguém do setor privado, ainda que com trânsito pela política, para com isso garantir a continuidade da política econômica e promover, talvez, uma reformatação da reforma previdenciária, para não pô-la em colisão com interesses de algumas (poucas, é claro) corporações do Estado. Em compensação, no quadro de um novo governo tampão com tais características, as corporações menos afortunadas do setor público terão saudades do deputado Artur Maia e até do unanimemente rechaçado PMDB.
Como visto, há várias hipóteses para o desfecho A (queda de Temer). Mas qual cenário emergiria se porventura se desse o desfecho B, a manutenção do Presidente? Nem precisaremos da ajuda da TV Globo para admitir que se temos vivido tempos bicudos, os que viriam o seriam ainda mais. A começar pela hipótese de mais gente comum migrar da rejeição massiva e passiva ao Governo, registrada em pesquisas de opinião, para uma participação em eventos organizados pela oposição política e por seus braços sindicais e nos movimentos sociais. O adensamento quase certo desse tipo de manifestação poderia ser suportado sem abalos graves, mas não a sua conversão em manifestações de massa, como as enfrentadas pelo Governo Dilma. Para evitar essa conversão, um Temer firme, enfático e agressivo, mas sem perder a elegância, como o que se mostra em declarações nesses dias de acuamento, teria que voltar às telas mais vezes para conversas mais diretas com a massa do eleitorado. Teria pendor e meios para isso se permanecesse sem um acordo ainda que provisório, com os canais de expressão da vontade geral/global? Não haveria outro jeito senão tentar, pois a olímpica versão de que não se importa com impopularidade, se já não cabia bem em qualquer situação vivida por um presidente de um país democrático, em caso de um governo Temer II teria que ser abandonada completamente. O governo provavelmente não seria mais tão forte no Congresso, pois algumas das defecções, como a do PSB, não parecem reversíveis a curto prazo. Tenderiam a aumentar os problemas internos em cada bancada partidária, o que forçaria o governo a fazer uso mais pródigo da caneta administrativa para abrir mais espaços a velhos e novos aliados e da tesoura política para abrandar ainda mais a reforma de Previdência. Surgiria aí uma nuvem: até que ponto o ministro Meireles sustentaria o apoio de agentes econômicos a um recuo relevante nessa área? Mais um fator que aconselharia a tentar um armistício com a suposta vontade geral. Por outro lado, um maior abrandamento da reforma previdenciária poderia desarmar parte do petardo armado contra o governo no último dia 17. Mesmo se a PF seguisse inflexível, talvez o bateu levou perdesse adeptos no interior do MP. Ainda mais se fosse incluída na pauta de negociações a troca do seu comando.
Concluída a digressão sobre cenários tateados na penumbra atual, voltemos ao MP e ao fator Janot. A mesma penumbra não permite que já se saiba agora se a instituição sairá desgastada ou fortalecida, após a arriscada operação em que a meteram. Se aparentemente faltam ao Procurador-Geral da República (como de resto aos seus até aqui explícitos parceiros de operação) pretensões jacobinas, o que então o animou a tanto? Talvez não caiba, por inútil, essa especulação típica de redes sociais e que nos levaria aos limites do insondável, ou do insólito, como ao supor que ele tivesse a veleidade de oferecer, no curso ainda do seu mandato, ocasião para um bombástico grand finale da Lava-Jato: a entrega da cabeça de Temer e seu governo para o regozijo de Madalenas que desejem ver inerte a Geni apedrejada e com isso se contentem. E também para o sossego de agentes econômicos que receiam o tipo de impacto que vinha sendo previsto a respeito da delação do ex-ministro Palocci. Mas ainda que quisesse, a cúpula da PGR poderia dar essa pirueta apenas em acerto com os veículos da vontade geral/global e sem combinar isso em sua casa e também com Moro, Fachin e o STF? Não se negue a esses interlocutores institucionais o voto de confiança para responder que não.
Uma vacina contra teorias conspiratórias agiria no sentido de considerar que, tanto ou mais que a vontade dos atores, mesmo dos mais poderosos e influentes, estão envolvidas nessa operação, por mais heterodoxa que ela tenha sido, razões de legítima natureza institucional. Mas o exercício especulativo sobre o que moveu a ousadia e a agressividade do Procurador-Geral (ou a de quem ele chancelou) pode se deter também em hipóteses mais prosaicas, ligadas à luta interna da própria corporação. Diz quem conhece o MPF (não é meu caso) que a comunidade de procuradores não se perfila, sem nuances e mesmo objeções, à cartilha dos missionários do MP em Curitiba. As razões se situariam em diferentes conceitos e concepções normativas sobre a práxis da instituição, mas também em contendas por posições de poder, sensíveis, por exemplo, à prisão de um procurador na esteira da própria operação que ora comentamos. Essa cena colateral ao escândalo, nas palavras do Dr. Janot, colocou gosto amargo na vitória que para ele a instituição ali obteve. O doce e o amargo propiciados pela ocupação do mais alto posto de comando da instituição decerto não são irrelevantes e podem fazer pensar que a instalação de um novo governo possibilitaria, ao atual chefe do MPF, influir no rumo de sua sucessão em grau maior do que aquele possível no atual governo. E a observação vale tanto para um governo sem Temer como para um eventual governo Temer II, que venha a se impor, após um enfrentamento seguido de negociação com quem for preciso.
Se inútil ou afoito for especular em qualquer dessas direções, é relevante registrar a relação da conduta da PGR com sua condição de ser, entre as instituições mais relevantes da República (incluindo seus Poderes), a única que não teve mudança de comando do fim da era petista para cá. Observando alterações de conduta derivadas da sucessão de Dilma Rousseff por Michel Temer; de Ricardo Lewandowski por Carmem Lúcia; de Renan Calheiros por Eunicio de Oliveira e de Eduardo Cunha por Rodrigo Maia, o impulso corporativo ou personalista cedeu claramente lugar ao da concertação. Por isso, o fim da paralisia dos poderes governativos e a consequente moderação da escalada de protagonismo político do Judiciário, sem prejuízo do seu pleno funcionamento e das demais instituições de controle nas esferas que privativamente lhe competem. Entre vantagens democráticas dessa convergência republicana há a maior proteção comum dos Poderes do Estado face à exposição de cada um, isoladamente, a pressões de corporações privadas e às relações perigosas sempre possíveis nesse circuito.
Há (ou havia) razões para supor, pelo andar da carruagem, que a sucessão na PGR em setembro poderia se dar em sintonia com essa lógica política que retoma tradições cultivadas nos melhores dias dos nossos poderes civis, tradições geralmente esquecidas em tempos de normalidade e retomadas quando nas crises se aguça o seu instinto de sobrevivência. Como ficará esse jogo agora? O Ministério Público emprestará sua colaboração de instituição republicana a uma concertação que preserve o Estado Democrático de Direito e fortaleça a Constituição para que a justiça republicana possa trabalhar em terreno político simpático a um permanente e sustentável combate à corrupção? Ou manterá performance sollo, surfando na fantasia faxineira? Caso consiga, com ajuda de veículos eficazes de formação de opinião, persuadir imediatamente a sociedade, essa promessa vã faria do Estado Democrático de Direito e da Carta de 88 vítimas, a médio e longo prazos, de capturas corporativas por interesses privados ocultos em embalagens demiúrgicas providenciadas por uma instituição de vocação democrática instrumentalizada em troca de tolerância ao seu próprio corporativismo.
Se a pinguela realmente cair, torçamos para que quem torceu ou contribuiu para sua queda - seja por vingança política ou por achar que valia a pena para denunciar a corrupção - saiba chegar a um porto nadando em águas turbulentas, pois estão de volta as que quase nos afogam no ano passado. E torçamos, principalmente, para que às turbulentas não sucedam águas turvas, como as de um passado autoritário e também corrupto que nós e nossos filhos não merecemos que volte para nos afogar de verdade - e não só nas narrativas dos que chamam de golpe, ou de crime continuado, o ensaio de transição desse último ano. Esse deu lugar a que espíritos politicamente informados e animados, mas não contaminados pela lógica binária que nos afundou na crise, vislumbrassem, em suas idas e vindas mal compreendidas, o possível retorno da política por vocação, que cultua valores mas, realista, também se dirige ao público como nas palavras de Max Weber: “eis-me aqui, não posso fazer de outro modo”.
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*Cientista político e professor da Universidade Federal da Bahia.
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