- O Globo
Moro vai puxando os fios que pouco a pouco desfazem uma gigantesca teia em que se moviam, soberanos, os poderosos
A História é a melhor das ficcionistas. A condenação do expresidente Lula a nove anos e meio de prisão pelo juiz Sergio Moro é um capítulo — não o último — de um romance assombroso e tristíssimo.
A sentença afirma, ao cabo de longa e cuidadosa investigação, que o herói do povo brasileiro, o defensor dos pobres, o líder dos operários do ABC, o presidente da República estimado mundo afora, sonhava com um tríplex no Guarujá e não hesitou em se dar um de presente, desenhado sob medida, pago indiretamente por dinheiro sujo desviado da Petrobras. Tivesse o episódio, como protagonista, um funcionário público qualquer ou outro politico corrupto, não teria a carga dramática que tem essa condenação.
Acontece que por 40 anos Lula incendiou o imaginário do povo brasileiro e foi depositário das melhores esperanças de redenção de um país terrivelmente desigual, órfão de um “pai dos pobres”. Sobretudo os mais jovens que, com razão, vivem no futuro e se nutrem de utopias, e os mais pobres, a quem pouco resta senão fé e esperança, devotaram ao jovem imigrante nordestino que virou presidente uma admiração, confiança e fidelidade quase religiosas que, ainda hoje, resiste aos trancos da vida real e nega a nudez crua da verdade: o ídolo tinha pés de barro e sonhos de ouro, de grandeza, poder e dinheiro. E nenhum escrúpulo.
Os bons personagens da literatura têm uma alta carga de ambiguidade. Lula foi suficientemente ambíguo para bem compor o personagem principal de uma história que, durante anos, empolgou o Brasil: a incrível aventura de um partido fundado para trazer a justiça social e que, metamorfoseado em uma organização criminosa, que ele é acusado por procuradores de chefiar, saqueia o país. Representou tão bem o seu papel que ainda hoje é difícil distinguir o que nele é verdade ou ficção. Talvez nem ele mesmo saiba, à força de trocar de bonés, enganando a todos, ora amigo cúmplice de Emílio Odebrecht e companheiro de Léo Pinheiro, ora herói dos sem-terra.
O que ele certamente sabe é que quer voltar ao poder, ar sem o qual não respira e, a qualquer custo, escapar da prisão. Decadência de um personagem que se apresentou como redentor de um país gigante e dramático, percebido como um herói e que acaba condenado por um tríplex de mau gosto que um empresário rico e vigarista lhe deu de gorjeta.
Quem o condenou foi um juiz muito jovem, de primeira instância, um anônimo juiz de Curitiba, homem de classe média, admirador do juiz Giovanni Falcone, que comandou a operação Mãos Limpas na Itália, assassinado pela máfia. Saído do nada, como cabe aos personagens que vão crescer na história, imbuído de uma ideia obsessiva de bem cumprir seu dever de garantidor da lei, Sergio Moro vai puxando os fios que pouco a pouco desfazem uma gigantesca teia em que se moviam, soberanos, os ricos e poderosos, homens criados e afeitos à impunidade, assaltantes contumazes dos cofres públicos disfarçados de políticos, ministros e presidentes. Nessa teia moviam-se também, em promíscua cumplicidade, as lideranças daquele partido que ia salvar o país.
A cada capítulo desse romance é um herói que se revela bandido, um empresário que se revela mafioso, um mafioso que se torna ministro. Sergio Moro empolga seus pares, multiplicam-se os juízes e procuradores atentos à corrupção. São poucos os políticos influentes que ainda não foram chamados a se explicar.
Nas páginas atuais do romance, apesar de condenado Lula ainda se mantém viável como candidato a voltar à Presidência. Pesquisas de intenção de voto, no entanto, mostram aquele anônimo juiz de Curitiba, o que o condenou à prisão, como capaz de derrotá-lo nas urnas se candidato fosse. Mas não é. O que anda pensando e sentindo, de fato, a maioria do povo brasileiro? Os próximos capítulos dirão.
De todo modo, o que esse romance conta é a trágica história de um povo traído em suas esperanças, perplexo, que tem agora que viver o luto pelos salvadores da pátria condenados por crime comum. Que aprende duramente a viver sem mitos, a pensar pela própria cabeça e fazer escolhas encarando sua dura realidade, aquela em que o país mergulhou, a pobreza, o desemprego e a violência, por conta do saque que os salvadores da pátria, nas sombras, organizaram.
Em todo bom romance, o desfecho é surpreendente. Surgirão novos personagens, inesperados ou até agora secundários, que trarão um pouco de felicidade a essa terra tão castigada? Ou, ao contrário, estará ela condenada à repetição de um destino maldito, ser a presa de impostores?
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Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
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