- Folha de S. Paulo
O ser humano só atinge sua essência dentro da comunidade política. E sua missão, como cidadão e animal cívico, é o de poder interferir na vida do Estado para alcançar o bem comum, não sendo suficiente, portanto, bastar-se a si mesmo.
Essa é a inclinação natural que conduz os homens a conviver em sociedade. Sob essa arquitetura aristotélica, qualquer cidadão pode ser chamado para servir à polis (o Estado), donde se infere que a política não tem margens. Nela, cabe quem quiser.
Dito isso, analisemos fenômenos políticos de nosso cotidiano, como eventuais candidaturas de outsiders. Luciano Huck, animador de um programa de TV, pode ser presidente da República? Poderiam concorrer figuras como Silvio Santos, Roberto Carlos, Pelé e Faustão? Esses nomes estão na galeria de influentes personalidades. Huck, aliás, já manifestou apoio a uma campanha de renovação da política.
A eleição de um "fora da política" não é coisa fora de propósito nestes tempos de mazelas que corroem as democracias, como a desideologização, o declínio dos partidos, o declínio dos parlamentos, o declínio das oposições, a personalização do poder, a ascensão das tecnoestruturas e de novos circuitos de representação, como associações, sindicatos, grupos, movimentos.
O deslocamento da política tradicional para outros espaços é realidade que ganha impulso. Pesquisas mostram velhos protagonistas mergulhados em imenso lamaçal.
O momento, como no passado, propicia rupturas. Em 1959, chegamos a eleger um Cacareco. Governava São Paulo Adhemar de Barros (1901-1969).
O eleitorado indignava-se contra vereadores paulistanos. Na campanha, um rinoceronte de 230 quilos vindo do Rio e emprestado para abrilhantar a inauguração do Zoológico foi lançado candidato a vereador com o slogan "Vale quanto pesa". Levou 100 mil votos.
O eleitor usava um pedaço de papel que colocava em envelope recebido do mesário. O candidato mais votado não ultrapassou 110 mil votos. Cacareco, devolvido ao Rio, morreu pouco tempo depois. A revista "Time" pinçou a frase de um eleitor: "É melhor eleger um rinoceronte do que um asno".
Em 2018, muita gente pode votar em Cacarecos. Ou em perfis que encarnam a lei e a ordem. Jair Bolsonaro é exemplo. A sociedade está saturada de velhos costumes, voltando-se para figuras mais assépticas. João Doria que o diga.
O eleitor busca candidatos entre celebridades, como Huck e Silvio Santos, que já acenou para a política no passado. Teriam chance? Em tese, sim. Ouve-se essa frase por todo lado: "Todo político é ladrão". Portanto, o país corre o risco de eleger um outsider.
A crise chegaria ao pico, porquanto celebridades não teriam condições de "pôr o guizo no gato", administrar uma herança de 35 partidos, duas Casas congressuais, presidencialismo de coalizão, um corpo com DNA formado na roça do fisiologismo.
Mesmo uma Marina Silva, com roupagem ética, ou Ciro Gomes, de metralhadora expressiva, resistiriam às pressões de 513 figuras na Câmara e 81 no Senado. Nomes fora da política não resistiriam ao enfrentamento de uma crise crônica. Poderiam, isso sim, até colaborar para oxigenar a política nas três instâncias federativas.
Perfis radicais, de direita ou de esquerda, ou alguém do mundo dos olimpianos da cultura de massa lançariam o país no caos. Perigo à vista: no horizonte há sinais da polarização que cindiu, na era petista, a sociedade entre "nós e eles", "bons e maus". Novo apartheid será um inferno. A esperança se volta para um perfil de centro. A depender da "Santa Economia".
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Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação
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