- Folha de S. Paulo
A nota do PT, divulgada logo após a condenação unânime de Lula pelo TRF-4, caracteriza o resultado como "uma farsa judicial", fruto do "engajamento político-partidário de setores do sistema judicial, orquestrado pela Rede Globo", os "mesmos setores que promoveram o golpe do impeachment".
O partido compromete-se a "lutar em defesa da democracia", "principalmente nas ruas". Desde que nasceu, o PT equilibra-se sobre uma disjuntiva: partido da ruptura, para consumo interno; partido da ordem, para consumo externo. A tensão chega agora a um grau extremo, insustentável. Finalmente, diante da esfinge mítica, o PT terá que decifrar seu enigma existencial.
As democracias, com seus rituais eleitorais periódicos, tendem a expurgar os partidos da ruptura para as franjas do cenário político. Desde cedo, o PT circundou o túnel do isolamento, definindo-se como partido institucional. O discurso de ruptura, jamais descartado, retrocedeu à trincheira dos eventos de militância. A dualidade discursiva atingiu o ápice depois que Lula subiu a rampa do Planalto.
De um lado, o presidente congraçava-se com o alto empresariado e com os personagens icônicos da tradição patrimonialista nacional. De outro, os congressos do PT imprimiam resoluções cada vez mais radicais, pontuadas por termos como "elite" (e, logo, "elite branca"), "imperialismo" e "socialismo".
A loucura obedecia a um método: conservar o monopólio petista sobre a esquerda do espectro político. A estratégia funcionou eficientemente, salgando o solo no qual o PSOL tentou lançar suas sementes. Na hora do impeachment, a duplicidade adquiriu as tonalidades da hipocrisia escancarada, mas sobreviveu ao teste de fogo. A deposição legal de Dilma Rousseff foi declarada um "golpe" e o PT prometeu resistir nas ruas, eletrizando a base social de esquerda.
Na sequência, a alma institucional restaurou seu primado e o partido reinstituiu sua política de amplas alianças eleitorais, que inclui os "golpistas" do MDB e do "centrão". A militância engoliu em seco, assim como os intelectuais "companheiros de viagem". O partido da ordem conhece perfeitamente suas prioridades. A valsa, porém, não mais se repetirá.
A dupla alma petista organiza-se ao redor de Lula, o venerado caudilho que abraça tanto um Maduro quanto um Odebrecht.
A eliminação judicial da figura nuclear implode o instável equilíbrio do edifício partidário. Como substituir Lula na cédula presidencial sem destruir a mística que preserva o monopólio sobre a esquerda? Cabeça humana, corpo leonino, a esfinge encara o PT, exigindo uma resposta nítida: ordem ou ruptura?
Uma coisa é José Dirceu; outra, é Lula. O partido abandonou alegremente o primeiro, em nome do imperativo da ordem, que se identifica com a insaciável ambição de poder do segundo -e com as valiosas carreiras políticas dos quadros petistas. O segundo, contudo, confunde-se com o próprio partido -ou, na linguagem lulista, com nada menos que o "povo brasileiro".
O manual do marketing eleitoral reza que o nome de Lula deve permanecer numa cédula fictícia, aureolado pela denúncia da "farsa judicial", até o momento derradeiro da substituição inevitável. Mas como fazer a transição do discurso da ruptura ao da ordem, entregando o cetro a um Jaques Wagner (ou, pior, a um Ciro Gomes), sem fragmentar o campo da esquerda?
O espectro da prisão de Lula complica ainda mais o artifício. No rastro do impeachment, Guilherme Boulos cumpriu, como culpado útil, a missão teatral de incendiar a militância de esquerda, arando o terreno para a reinstalação do discurso lulista da ordem eleitoral.
Agora, junto com o PSOL tem a oportunidade de deflagrar sua campanha presidencial combatendo "nas ruas" a "farsa judicial" dos "golpistas de sempre".
Depois de Lula, o PT não pode mais enganar a si mesmo. É a hora da esfinge.
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*Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'.
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