quinta-feira, 9 de maio de 2019

*Eugênio Bucci: Um país se desfaz com machões e armas

- O Estado de S.Paulo

O que está em formação no Brasil é um pacto autoritário, de viés fascistizante

O retrato está na primeira página do Estadão de ontem. A foto, assinada por Dida Sampaio, estende-se de fora a fora e mostra um amontoado de homens engravatados, sorridentes e agitados. Quatro deles reproduzem, uns com as duas mãos, o gesto que foi a marca registrada do candidato vencedor na campanha eleitoral de 2018: o indicador rijo (dedo duro) apontado para a frente e o polegar espetado para cima simulam um revólver pronto para disparar. Esses senhores parecem festejar dando tiros imaginários para o alto. São os pistoleiros do apocalipse.

No meio deles, cabeça baixa, curvado sobre uma mesa, o presidente da República também sorri. Ele apenas reclinou o tronco para assinar um papel: o decreto que facilita ainda mais o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo para colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (o texto menciona ainda praças das Forças Armadas e militares inativos). Conforme saiu publicado no Diário Oficial, o decreto também franqueia o porte a políticos, motoristas de veículos de carga, proprietários rurais e outras categorias profissionais. Por isso, aquela falange masculina em torno do chefe de Estado se rejubila. O grupo lembra uma torcida que comemora um gol. Uns e outros parecem gritar de euforia. De outro lado, há algo naqueles homens que os assemelha a crianças que acabam de ganhar um brinquedo novo. O brinquedo que tanto os excita é um aparelho de matar gente.

Uma segunda notícia que despertou alguma atenção por estes dias foi a denúncia que parlamentares brasileiros protocolaram na ONU contra o governador do Rio, Wilson Witzel. Os denunciantes afirmam que o número de mortes em confrontos com policiais no Estado bateu um recorde no primeiro trimestre de 2019. Falam em “agenda genocida”. Witzel, a propósito, filmou a si mesmo a bordo de um helicóptero armado de metralhadora de grosso calibre prometendo “acabar de vez com essa bandidagem que está aterrorizando a nossa cidade maravilhosa de Angra dos Reis”. O vídeo é forte. Talvez não seja recomendável para menores de 18 anos. Ou de 25 anos. O governante esbraveja e exulta. Parece crer que o chumbo libertará os balneários.

Imagens explícitas da fusão doentia entre virilidade e pólvora nunca foram tão obscenas – e tão oficiais – no Brasil. Nunca a política esteve tão entregue ao tiroteio. Nem mesmo no tempo da caça a Lampião. Nem mesmo nas excursões armadas que dizimaram os domínios de Antônio Conselheiro. A macheza fumegante ocupa o topo da pirâmide das virtudes políticas. Perto de personagens assim, o pobre ditador João Figueiredo, que dizia “eu prendo e arrebento”, é uma indefesa Madre Teresa de Calcutá.

Enquanto isso, no Ministério da Educação o tempo vai fechando. Segundo informou na terça-feira a Agência Brasil, o ministro Abraham Weintraub vituperou uma vez mais contra as universidades públicas e os cursos de humanidades. Segundo se lê no informe da agência – controlada pela estatal EBC –, Weintraub teria dito que “apenas 13% da produção na área de Ciências Sociais Aplicadas, Humanas e Linguística têm impacto científico” e que, apesar disso, “a maioria das bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) vão para estudantes da área de Humanas”, num “investimento não traz retorno efetivo ao País”. Com esse tipo de “análise”, o ministro defende cortes orçamentários no ensino público.

Você pode até dizer que são notícias desimportantes. Talvez sejam mesmo. Diante das urgências clamorosas que reclamam soluções da gestão pública neste país, os trejeitos machistas do entorno do presidente da República, as bravatas facínoras do governador do Rio ou as selvagerias verbais do ministro da Educação, haveremos de convir, são episódios menores. Não obstante, importam. É por esses episódios menores que o caráter do poder que aí está se revela sem reservas. É nos excessos despudorados dessas autoridades que podemos vislumbrar a face crua de um estado de coisas que promove a multiplicação das armas de fogo, ao passo que amaldiçoa a circulação de livros e ideias.

Para a onda autoritária em ascensão, esta que aí está, só a violência pode organizar a vida. Para o bolsonarismo, a reflexão filosófica é perda de tempo (“não traz retorno”) e os cursos de humanas são centros geradores de “balbúrdia”. Estamos assistindo, com alguma passividade, a uma reprise de filmes antigos cujo final já conhecemos.

Esses governantes não suportam a dissidência, a diversidade, a discordância, a liberdade individual de dar curso ao desejo, tenha ele a forma amorosa que tiver. Eles não gostam de democracia, na verdade. Eles detestam os livros. Eles são fascinados por armas fálicas.

Os pactos autoritários tiram seu vigor da obediência, da adesão e da renúncia de cada um à autonomia crítica. Não por acaso, é isso o que o bolsonarismo requisita a seus seguidores. A ordem democrática, ao contrário, extrai energia das diferenças. A obediência mata as sociedades democráticas, pois mata, dentro delas, os princípios que favorecem a alternância do poder na esfera política, a inovação na área industrial e a arte desestabilizadora no campo da cultura. A obediência – tão cara ao bolsonarismo – clama por tiranias, assim como o exercício da liberdade clama por democracia.

Não há mais como ter dúvidas: o que está em formação no Brasil é um pacto autoritário, de viés fascistizante, que anuncia aos súditos uma bonança que será produzida por tiros de fuzil. Nesse pacto, as bibliotecas serão banidas como focos de subversão e os quartéis serão transformados em catedrais da moral. O poder que se vai formando entre nós é o poder das desumanidades armadas.

Faz muito tempo, o escritor Monteiro Lobato escreveu que “um país se faz com homens e livros”. Hoje olhamos para os palácios no Brasil e constatamos a escassez do que nos torna humanos, seja no plano das ideias, seja no plano dos sentimentos. Um país se desfaz.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

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