Os desafios da República – Editorial | O Estado de S. Paulo
Os 130 anos da proclamação da República são uma ocasião especial para refletir sobre o futuro do Brasil. A mudança de regime ocorrida em 1889 foi o resultado de um amplo movimento cívico, que teve a ousadia de pensar os problemas nacionais, apresentar propostas concretas e lutar por elas. Momento especial dessa trajetória foi o Manifesto Republicano de 1870, que conclamava, juntamente com o fim da monarquia, a ampliação dos direitos políticos, a melhora da educação e a instalação do federalismo.
Com sua história intimamente ligada à proclamação da República – foi fundado em 1875 com o objetivo de propugnar pela abolição da escravidão e pelo fim da monarquia –, o Estado está publicando nesta semana uma série de reportagens sobre os novos desafios da República. Para tanto, o jornal entrevistou 53 lideranças, de diversas áreas, fazendo a todos duas perguntas. Quais promessas da República foram cumpridas? Quais valores deveriam ser reafirmados em um novo manifesto republicano? A resposta mais frequente à segunda pergunta foi o combate à desigualdade.
Nas respostas, também foram muito mencionados os seguintes valores: promoção da democracia, educação, combate aos privilégios, reforma do Estado contra o nepotismo, o clientelismo e o patrimonialismo, igualdade perante a lei, promoção da liberdade, melhora da representatividade, igualdade de oportunidades e liberdade de expressão.
Ao reunir essas respostas, fica evidente que os valores mencionados são complementares. “A democracia e a liberdade exigem um complemento de natureza solidária, que espelhe a importância de lacunas que ainda temos. Igualdade de oportunidades e uma rede de proteção solidária são cruciais”, lembrou o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
A convicção da complementaridade desses valores esteve muito presente na campanha pela instauração da República na segunda metade do século 19. A luta pelo fim da monarquia não se resumiu a destituir o imperador d. Pedro II ou a instaurar um novo regime de governo. Os dois princípios da República – a igualdade de todos e o governo das leis – eram encarados como os pilares de todo o desenvolvimento político, econômico e social do País.
Decorridos 130 anos são muitos os desafios que ainda não foram devidamente enfrentados. “Colocar a educação como eixo central do projeto de Nação nunca aconteceu”, disse Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela Educação. Diante do muito que o Brasil ainda tem de caminhar para alcançar patamar mínimo de desenvolvimento, é urgente resgatar e revalorizar os dois princípios basilares da República.
A igualdade e o regime das leis continuam sendo plenamente atuais e de enorme fecundidade. O que falta é aplicá-los em toda a sua profundidade.
Em artigo recente publicado no Estado (Constituição e a supremacia do governo das leis, 12/11/2019), o professor Celso Lafer lembrou, por exemplo, a rica concepção que os romanos tinham da lei. “Lex é uma palavra que tem como base a ideia de relação, de convenção, que liga os homens entre si e se efetiva, não através de um ato de força, mas sim politicamente através de um arranjo ou acordo mútuo. Daí, em matéria de governo das leis, a convergência republicana entre o consensus juris (o consenso do direito) e a communis utilitatis (a comum utilidade), que deve alcançar o povo como o destinatário do que deve ocorrer na res publica”, escreveu o professor da USP. Ter presente a dimensão relacional da lei e sua direta vinculação com o bem público pode contribuir para um renovado respeito ao Direito vigente, carência ainda tão marcante no Brasil dos dias de hoje.
A causa da República não terminou no dia 15 de novembro de 1889. Persistem no País profundas desigualdades e perversos privilégios. Ao mesmo tempo, é de justiça reconhecer o profundo impacto positivo do ideal republicano na trajetória do País. Muito se fez ao longo desses 130 anos. E ainda hoje os valores republicanos inspiram muitas iniciativas e projetos que trabalham pelo bem público. Que a República continue sendo um ideal capaz de unir todo o País.
Sentido da República – Editorial | Folha de Paulo
Aos 130 anos, e apesar dos avanços, regime ainda não torna nação menos desigual
O Brasil apresenta trajetória institucional singular, no contexto das Américas, não apenas por ter sido colonizado pela coroa portuguesa. Uma série de razões também levou o sistema republicano a se implantar tardiamente por aqui.
A inauguração do regime só ocorreu no fim do século 19, mais de cem anos depois de os Estados Unidos terem aberto esse caminho —seguido como regra pelas nações americanas conforme vieram se tornando independentes.
Há 130 anos a revolta liderada por um marechal simpático à monarquia culminou na aniquilação do Império e na proclamação da República. O golpe pretoriano foi sucedido por uma ditadura comandada pelo próprio Deodoro da Fonseca.
O presidente voltaria a usurpar o poder em 1891, quando fechou o Congresso, mas em seguida sucumbiria ao contragolpe consumado pelo vice, Floriano Peixoto, oficial apoiado por fração musculosa da caserna e da oligarquia nacional.
O movimento nascido para combater o elemento absolutista encarnado no imperador floresceu em contradições assim que arrebatou o Estado. O espectro do caudilhismo, da tutela militar e do parasitismo oligárquico assombrou a República no seu primeiro século.
Também o germe da exclusão social se hospedou naquele organismo heterogêneo. O Partido Republicano Paulista mal disfarçava a ligação com o interesse escravocrata. Para a sigla, de 1873, acorreram senhores frustrados com a retomada da marcha abolicionista.
Seria cair em reducionismo, no entanto, deixar de contemplar os aspectos virtuosos da rede de incoerências que constituiu a caminhada republicana no Brasil.
De embates como os de Rui Barbosa contra investidas arbitrárias do poder público, já nos primeiros anos do novo regime, emergiu a chamada doutrina brasileira do habeas corpus, patrimônio do Estado de Direito até hoje cultivado no Supremo Tribunal Federal.
A resistência de republicanos e abolicionistas precoces, como Luiz Gama, à estupidez dos plutocratas que comandavam o seu partido legou-nos o inconformismo com a discriminação pela cor da pele e com o abandono da maioria da população à pobreza e à ignorância.
“O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade —tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso país. Privilégio de religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição, isto é, todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou a de alguns sobre muitos.”
Em trechos como este, o Manifesto Republicano (1870) exprimiu o sentido primordial do regime que pretendia implantar. Pelo contraste com o império das desigualdades artificiosas, propugnava por um sistema em que a isonomia passasse a prevalecer de fato.
Nada mais atual, decerto. Sem embargo dos avanços substanciais conquistados sob a Constituição democrática de 1988, ninguém há de negar que o programa consignado pelos primeiros republicanos está longe de ser completado.
Todos são iguais diante da lei, mas o acesso à Justiça é mais largo para os ricos. O fato de criminosos do colarinho branco começarem a sair detrás das grades após um lapso de esperança na luta contra a corrupção é uma mensagem não republicana das autoridades.
Todos são iguais diante da lei, mas a má qualidade do ensino público conduz a maioria das crianças ao mesmo labirinto de baixa renda e imobilismo social que aprisiona seus pais, prolongando a chaga da desigualdade. O gasto do governo com a elite universitária é desproporcionalmente elevado. Inépcia e patrimonialismo mantêm metade da população sem coleta de esgoto.
Todos são iguais diante da lei, mas pretos e pardos ainda ganham menos e morrem mais de causas evitáveis que os brancos. Há muito mais homens que mulheres nos cargos de maior destaque das empresas e na representação política.
A lei a todos iguala, mas algumas categorias profissionais desfrutam de regimes especiais de trabalho. O vencimento de um servidor público é quase o dobro do de um assalariado da iniciativa privada com características equiparáveis.
A lei fundamental não discrimina, mas um novelo de regramentos e ações discricionárias dos agentes estatais torna a atividade empresarial de uns mais favorecida que a de outros. Em vez de dedicar energia a aumentar sua produtividade, grandes empresas se especializaram nos lobbies para arrancar vantagens da burocracia.
A igualdade de tratamento é a regra, mas alguns procuram impor sua moral e sua visão de mundo ao conjunto da sociedade. A liberdade do cidadão de conduzir como quiser a vida privada e de se expressar nem sempre encontra a devida proteção daqueles que deveriam zelar pelos direitos fundamentais.
Todos se submetem à lei, mas o presidente da República se vale do que deveria ser o poder impessoal do Estado para resolver suas querelas políticas. Discrimina, ameaça e edita normas para perseguir adversários. Presenteia amigos.
É dia de comemorar os 130 anos da República sem perder de vista que, apesar dos avanços, “a monstruosa superioridade de alguns sobre muitos” se mantém à espreita.
Pragmatismo de Bolsonaro é uma boa novidade – Editorial | O Globo
Apesar de críticas à China no passado, presidente se curva à importância do país para o Brasil
A reunião de cúpula do grupo de países conhecido como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi um choque de realidade para o governo. A ênfase no pragmatismo com a China revelou um presidente Jair Bolsonaro em contraste com o candidato que há um ano mantinha visão estreita —até hostil — sobre o principal cliente do Brasil. O peso do poder impôs a mudança.
Quando Bolsonaro se elegeu, a China já comprava 29% de tudo o que o Brasil exportava. Ano passado foram US$ 66,6 bilhões, com aumento de 35% nas vendas, permitindo um superávit de US$ 30 bilhões. No governo Bolsonaro o ritmo de negócios se mantém em três commodities (soja, minério de ferro e petróleo), que representam 80% do tudo que é vendido à China, e avança em outros produtos: o Brasil já abastece 80% do consumo chinês de aves e 30% de carne bovina. Esse dinamismo agora se espraia por investimentos na infraestrutura brasileira, sobretudo em energia.
Essa vitalidade o Brasil não conseguirá reproduzir com os demais integrantes do Brics. Juntos, Rússia, Índia e África do Sul somam 3% do comércio brasileiro. O cenário sugere chances para políticas comerciais, com abordagem pragmática.
Por isso, é louvável a relativa mudança de comportamento do presidente, que insistia em pautar sua visão das relações do Brasil com o mundo a partir exclusivamente de um alinhamento automático aos princípios unilateralistas do governo Donald Trump, impulsionado pela pregação obscurantista, às vezes terraplanista, dos atuais responsáveis pela política externa.
Essa metamorfose foi notada, por exemplo, pelo líder chinês Xi Jinping. Sentindo-se confortável, ele anunciou a decisão de “aumentar e melhorar o comércio e investimentos”. Animou o ministro da Economia, Paulo Guedes, a mencionar negociações para uma “área de livre comércio”. É empreitada complexa, dependente de harmonização com o acordo Mercosul-União Europeia e, principalmente, de enquadramento na moldura da China para relações multilaterais, a “Belt and Road Initiative” (BRI), mais conhecida como nova Rota da Seda.
É certo, porém, que se Bolsonaro demonstrou pragmatismo com a China, perdeu uma oportunidade. Tinha a presidência rotativa do grupo Brics, mas não se dispôs a explorar a densidade política que possui o bloco, devido ainda ao alinhamento aos EUA. Isso ficou visível na inócua tentativa do Itamaraty de convencer os líderes Xi Jinping (China), Vladimir Putin (Rússia), Narendra Modi (Índia) e Cyril Ramaphosa (África do Sul) a subscrever uma declaração contra a cleptocracia venezuelana liderada pelo ditador Nicolás Maduro. Justa, mas inadequada à reunião.
Recusaram, porque atendia aos interesses da Casa Branca na região. Retrucaram, abstraindo a América do Sul e destacando questões incômodas ao governo Trump no Sudão e na Coreia do Norte. Nesse aspecto, o Brasil ficou isolado.
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