segunda-feira, 27 de julho de 2020

Urgência e oportunismo – Editorial | O Estado de S. Paulo

O governo parece perigosamente enamorado por soluções heterodoxas para driblar o teto de gastos e tocar programas eleitoralmente vistosos

O governo de Jair Bolsonaro parece perigosamente enamorado por soluções heterodoxas, digamos assim, para driblar o teto de gastos e tocar programas eleitoralmente vistosos em meio à generalizada escassez de recursos.

O último movimento nesse sentido, patrocinado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional e pela Casa Civil, foi a elaboração de uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a possibilidade de financiar investimentos em obras de infraestrutura por meio de créditos extraordinários, que estão fora do limite do teto.

A justificativa é que tais empreendimentos serviriam para impulsionar a retomada da economia como resposta à crise gerada pela pandemia de covid-19. “O atual momento torna essencial que se garantam recursos orçamentários adicionais”, diz a minuta da consulta ao TCU, referindo-se a obras em andamento e também a projetos que só estão no papel. As verbas, afirma o texto, seriam “eficaz instrumento de alavancagem econômica e de enfrentamento da crise”. Na visão dos defensores da medida, portanto, estaria assim satisfeita a exigência para a abertura de crédito extraordinário: a imprevisibilidade e a urgência da despesa, em situações decorrentes de calamidade.

A pretensão chega a ser ofensiva à inteligência alheia. Há no governo quem consiga comparar as necessidades imediatas criadas pela pandemia - estas sim, urgentes e imprevistas - com projetos de infraestrutura que levam anos para serem concluídos e que já estavam sendo planejados bem antes da atual catástrofe sanitária.

O problema não são os projetos em si - entre os quais a revitalização de bacias hidrográficas e um novo programa habitacional -, que provavelmente se prestam ao que o governo deles espera, isto é, gerar empregos e desenvolvimento. A questão é que o governo, mais uma vez, parece desinteressado de encarar o desafio fiscal de encontrar recursos sem recorrer a truques contábeis e fintas legais.

O teto de gastos é um marco civilizatório. Ao lado da Lei de Responsabilidade Fiscal, estabeleceu que o dinheiro público é finito e deve ser usado com parcimônia, depois de amplo e transparente debate na sociedade, por meio de seus representantes políticos, sobre as reais prioridades do País. Não à toa, a emenda constitucional do teto foi aprovada no governo de Michel Temer, em 2016, depois da tétrica experiência do governo de Dilma Rousseff, que se notabilizou pela contabilidade criativa e por pedaladas fiscais - manobras sobretudo antidemocráticas, por esconder do escrutínio dos contribuintes a origem e o destino do dinheiro arrecadado pelo Estado.

Espanta que um governo cujo presidente se elegeu como reação a essa imoralidade política e econômica se preste a expedientes com o mesmo espírito. Consta que o governo desistiu de realizar a tal consulta ao TCU diante da previsível rejeição do tribunal e da opinião pública, mas esse possível recuo não atenua de nenhuma maneira a sensação de que o presidente Bolsonaro está inclinado a avalizar manobras estranhas que lhe darão preciosas verbas para turbinar seu capital eleitoral.

A mesma esperteza foi empregada pelo governo para tentar abocanhar uma parte do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), aprovado na terça-feira. Como o Fundeb não está limitado ao teto de gastos, o governo pretendia utilizar um porcentual do fundo para financiar o “Renda Brasil”, nome do programa de transferência de renda bolsonarista que pretende substituir o Bolsa Família e que, este sim, estará submetido ao teto de gastos.

Felizmente o Congresso barrou essa manobra, mas está ficando claro que outras do tipo virão por aí. Para quem só pensa em eleição, como o presidente Bolsonaro, o prêmio é bom demais para ser ignorado: dar dinheiro para milhões de pobres e empregá-los em obras espalhadas pelo País alimenta um gigantesco curral eleitoral. Como ensinou o demiurgo petista Lula da Silva, esse capital pode garantir o poder por mais de uma década, mesmo em meio a escândalos e incompetência administrativa.

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