segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Miguel de Almeida - 11 de agosto terá gosto de 7 de setembro

O Globo

Ter de ler texto de 636 palavras azedou Bolsonaro

O que azedou Bolsonaro não foi o teor da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”. Fosse um tuíte, tudo bem. Mas ele se viu forçado a ler um texto de 636 palavras, com ponto, vírgula e parágrafos. Além de referências conceituais, históricas e sociológicas. Foi como atravessar “Guerra e paz”, de Tolstói.

Com base em sua performance pública de usuário de teleprompter, é possível dizer que a leitura dos 15 parágrafos tenha lhe consumido o tempo equivalente a três motociatas sem capacete. Para esnobar, chamou o documento de “cartinha”. Longe de ser juízo de valor, o diminutivo denota o incômodo com a quantidade de sinapses de que se viu forçado a lançar mão num cérebro moldado a frases diretas, jamais subjuntivas e nunca conjuntivas.

Conjunção, nem pensar:

— Não sou coveiro, tá?

Semelhante admoestação — afirmo: com a extensão, não pelo conteúdo — explicitou o ministro Ciro Nogueira, colega de recreio do general Heleno. Questionado, gaguejou um raciocínio de tuíte:

— Pix!

Vistos do alto, são dois mundos distantes, com camadas tectônicas de poeira, quase antagônicas. Imagine, uma carta na época do zap; a gramática quando existem os emojis; o argumento em lugar das fake news; tempos verbais se um like resolve tudo.

Recorrer assim ao instituto da carta, para quem transformou o Ministério da Educação num templo, é ser aterrorizado pela voz passiva ou acreditar que a ordem indireta seja codinome de post de esquerdista.

Causa receio o resumo perpetrado por Ciro Nogueira, a pedido de Bolsonaro, se recebesse a Carta aos Fariseus:

—Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro eles estão cheios de ganância e cobiça.

Ou:

— Serpentes! Raça de víboras! Como vocês escaparão da condenação ao inferno?

Viriam por certo outros ataques às urnas eletrônicas.

Não é necessário passar por Efésios ou Coríntios para entender a importância das missivas. Em 1943, intelectuais como Pedro Nava, Milton Campos e Afonso Arinos, entre outros, assinaram o Manifesto dos Mineiros com críticas à ditadura de Getúlio Vargas. No ano anterior, os estudantes já haviam desafiado o sanguinário regime com passeatas no Rio de Janeiro, então Capital Federal. O documento das personalidades liberais foi a primeira tomada de posição da sociedade que não vinha exclusivamente da esquerda.

Foi uma sedição acachapante. Impressos às escondidas numa gráfica de Barbacena (MG), sem que a polícia política varguista, temida por sua violência, farejasse a trama, os 50 mil exemplares foram distribuídos de casa em casa, colocados sob as portas. Ficaram grudados nos postes e correram de mão em mão. Como os jornais se encontravam sob total censura, a tática imaginada pelos sediciosos começou a minar o regime.

“As palavras que nesta mensagem dirigimos aos mineiros queremos que sejam serenas, sóbrias e claras. Nelas não se encontrará nada de insólito, nenhuma revelação”, começava o texto. “Falamos… sem enxergar divisões ou parcialidades, grupos, correntes ou homens.”

Não era uma conspiração, mas um enfrentamento direto. Ao final, trazia a assinatura com nome e sobrenome de seus 92 respeitados autores, cepa liberal da melhor intelectualidade mineira. Vargas, no papel de ditador bananeiro, reagiu dentro de sua conhecida covardia, com a demissão de quem era funcionário público e tirando o emprego dos que trabalhavam na iniciativa privada. Além de decretar prisões.

À coragem dos mineiros, seguiu-se em janeiro de 1945, em São Paulo, por sugestão de Oswald de Andrade e Jorge Amado, o Congresso de Escritores, que produziu outra Carta, também contra a censura e pela redemocratização. Logo no primeiro parágrafo, os autores pediam: “A legalidade democrática como garantia da completa liberdade de expressão do pensamento, da liberdade de culto, da segurança contra o temor da violência e do direito a uma existência digna”.

Tal como no novo manifesto pela democracia, se encontravam nomes candentes da sociedade brasileira, lado a lado, mas de gradações políticas distintas: Jorge Amado, de esquerda, ou liberais como Otto Lara Resende e Mário de Andrade. E até o dramaturgo Guilherme de Figueiredo, cujo irmão, João, viria a ser o último general-presidente do regime militar.

No próximo dia 11 de agosto, no emblemático Largo São Francisco, diante da Faculdade de Direito, a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, certamente em coro, será reverberada por uma multidão, em respeito àqueles que morreram na luta pela democracia nas ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares de 1964. Também por todos os que hoje defendem a liberdade e o avanço civilizatório.

É um 11 de agosto com o gosto do verdadeiro 7 de setembro.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A ditadura varguista não pode ser esquecida,parabéns ao colunista!