O Globo
Ter de ler texto de 636 palavras azedou
Bolsonaro
O que azedou Bolsonaro não foi o teor da
“Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de
Direito”. Fosse um tuíte, tudo bem. Mas ele se viu forçado a ler um texto de
636 palavras, com ponto, vírgula e parágrafos. Além de referências conceituais,
históricas e sociológicas. Foi como atravessar “Guerra e paz”, de Tolstói.
Com base em sua performance pública de usuário de teleprompter, é possível dizer que a leitura dos 15 parágrafos tenha lhe consumido o tempo equivalente a três motociatas sem capacete. Para esnobar, chamou o documento de “cartinha”. Longe de ser juízo de valor, o diminutivo denota o incômodo com a quantidade de sinapses de que se viu forçado a lançar mão num cérebro moldado a frases diretas, jamais subjuntivas e nunca conjuntivas.
Conjunção, nem pensar:
— Não sou coveiro, tá?
Semelhante admoestação — afirmo: com a
extensão, não pelo conteúdo — explicitou o ministro Ciro Nogueira,
colega de recreio do general Heleno. Questionado, gaguejou um raciocínio de
tuíte:
— Pix!
Vistos do alto, são dois mundos distantes,
com camadas tectônicas de poeira, quase antagônicas. Imagine, uma carta na
época do zap; a gramática quando existem os emojis; o argumento em lugar das
fake news; tempos verbais se um like resolve tudo.
Recorrer assim ao instituto da carta, para
quem transformou o Ministério da Educação num templo, é ser aterrorizado pela
voz passiva ou acreditar que a ordem indireta seja codinome de post de
esquerdista.
Causa receio o resumo perpetrado por Ciro
Nogueira, a pedido de Bolsonaro, se recebesse a Carta aos Fariseus:
—Ai de vocês, mestres da lei e fariseus,
hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro eles
estão cheios de ganância e cobiça.
Ou:
— Serpentes! Raça de víboras! Como vocês
escaparão da condenação ao inferno?
Viriam por certo outros ataques às urnas
eletrônicas.
Não é necessário passar por Efésios ou
Coríntios para entender a importância das missivas. Em 1943, intelectuais como
Pedro Nava, Milton Campos e Afonso Arinos, entre outros, assinaram o Manifesto
dos Mineiros com críticas à ditadura de Getúlio Vargas. No ano anterior, os
estudantes já haviam desafiado o sanguinário regime com passeatas no Rio de
Janeiro, então Capital Federal. O documento das personalidades liberais foi a
primeira tomada de posição da sociedade que não vinha exclusivamente da
esquerda.
Foi uma sedição acachapante. Impressos às
escondidas numa gráfica de Barbacena (MG), sem que a polícia política
varguista, temida por sua violência, farejasse a trama, os 50 mil exemplares foram
distribuídos de casa em casa, colocados sob as portas. Ficaram grudados nos
postes e correram de mão em mão. Como os jornais se encontravam sob total
censura, a tática imaginada pelos sediciosos começou a minar o regime.
“As palavras que nesta mensagem dirigimos
aos mineiros queremos que sejam serenas, sóbrias e claras. Nelas não se
encontrará nada de insólito, nenhuma revelação”, começava o texto. “Falamos…
sem enxergar divisões ou parcialidades, grupos, correntes ou homens.”
Não era uma conspiração, mas um
enfrentamento direto. Ao final, trazia a assinatura com nome e sobrenome de
seus 92 respeitados autores, cepa liberal da melhor intelectualidade mineira.
Vargas, no papel de ditador bananeiro, reagiu dentro de sua conhecida covardia,
com a demissão de quem era funcionário público e tirando o emprego dos que
trabalhavam na iniciativa privada. Além de decretar prisões.
À coragem dos mineiros, seguiu-se em
janeiro de 1945, em São Paulo, por sugestão de Oswald de Andrade e Jorge Amado,
o Congresso de Escritores, que produziu outra Carta, também contra a censura e
pela redemocratização. Logo no primeiro parágrafo, os autores pediam: “A
legalidade democrática como garantia da completa liberdade de expressão do
pensamento, da liberdade de culto, da segurança contra o temor da violência e
do direito a uma existência digna”.
Tal como no novo manifesto pela democracia,
se encontravam nomes candentes da sociedade brasileira, lado a lado, mas de
gradações políticas distintas: Jorge Amado, de esquerda, ou liberais como Otto
Lara Resende e Mário de Andrade. E até o dramaturgo Guilherme de Figueiredo,
cujo irmão, João, viria a ser o último general-presidente do regime militar.
No próximo dia 11 de agosto, no emblemático
Largo São Francisco, diante da Faculdade de Direito, a “Carta às Brasileiras e
aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, certamente em
coro, será reverberada por uma multidão, em respeito àqueles que morreram na
luta pela democracia nas ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares de 1964.
Também por todos os que hoje defendem a liberdade e o avanço civilizatório.
É um 11 de agosto com o gosto do verdadeiro 7 de setembro.
Um comentário:
A ditadura varguista não pode ser esquecida,parabéns ao colunista!
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