domingo, 5 de fevereiro de 2023

Entrevista | Barbara Walter: ‘Os cidadãos não podem ficar à parte e esperar que a democracia sobreviva sozinha’

Referência em estudos de extremismo, Barbara Walter diz que declínio da democracia começou com ascensão das redes sociais e dos algoritmos e que instituições e sociedade civil fortes contêm arroubos autoritários

Por Thayz Guimarães / O Globo

À medida que as democracias recuam e os cidadãos se tornam mais polarizados, as guerras civis se tornarão ainda mais generalizadas e durarão mais do que no passado. Esta é a premissa do novo livro da cientista política Barbara Walter, “Como as guerras civis começam — e como impedi-las” (Zahar), que vem sendo comparado pela crítica ao best-seller “Como as democracias morrem”, de Daniel Ziblatt e Steven Levitsky.

Em entrevista ao GLOBO, Walter, que é professora de Assuntos Internacionais na Escola de Política e Estratégia Global da Universidade da Califórnia e uma referência internacional nos estudos sobre violência política e terrorismo, falou sobre o declínio das democracias em todo o mundo, mídias sociais, algoritmos, ascenção da extrema direita, Donald TrumpJair Bolsonaro e a cartilha seguida por eles, e também indicou caminhos para as sociedades fugirem das armadilhas antidemocráticas.

No livro, a senhora diz que desde 2010 o mundo tem visto mais países descerem a escada da democracia do que subi-la, mesmo democracias tidas como consolidadas. Por que isto acontece agora?

A resposta curta é que não sabemos. A resposta longa é que temos alguns palpites muito fortes. Um deles é que o declínio da democracia coincidiu com a ascensão das mídias sociais não regulamentadas e dos algoritmos que as grandes empresas de tecnologia projetaram para manter as pessoas tão engajadas quanto possível em seus celulares e laptops. E eles perceberam que o material que os mantém engajados por mais tempo é o material mais incendiário, que joga com o sentimento de medo, ameaça, raiva e ódio das pessoas, todas as emoções negativas. Portanto, isso parece estar tendo uma série de grandes efeitos sociais.

Poderia dar um exemplo?

Estamos vendo sociedades cada vez mais divididas entre si, seja sobre questões como o Vidas Negras Importam aqui nos EUA, seja sobre vacinas ou qualquer outra coisa. Os algoritmos permitem que as pessoas que querem tirar partido dessas questões joguem com elas e polarizem ainda mais as pessoas. Suspeitamos que os algoritmos também estão levando ao surgimento do nacionalismo étnico: se você divulga informações que deixam as pessoas com medo e com raiva, se sentindo ameaçadas, muitas vezes, o medo do outro, que joga com o medo dos imigrantes, entra em ação. Vemos isso na Alemanha, nos EUA, no Brasil, em todo lugar.

Líderes ocidentais costumam se referir aos extremistas como uma minoria ruidosa. Eles são realmente uma minoria?

Se você olhar para os grupos de milícias nos EUA, há alguns à esquerda, a grande maioria está à direita, cerca de 65% deles são grupos de supremacia branca e cerca de 25% são grupos contra o governo federal. Eles são absolutamente minoria, mas estão crescendo.

Por que democracias regridem?

Muitas vezes, as regressões ocorrem em períodos de mudança e insegurança, quando os cidadãos começam a se sentir inseguros sobre o futuro diante de uma crise econômica ou política, por exemplo. Nesses momentos, não raro um autocrata surgirá para tentar tranquilizá-los. Slobodan Milosevic fez isso quando a [República Federal da] Iugoslávia [formada por Sérvia e Mointenegro] de repente se tornou independente. Ele dizia que o momento era perigoso [uma série de conflitos étnicos que levou à desintegração da República Socialista Federativa da Iugoslávia nos anos 1990], que a população sérvia precisava de um líder forte para protegê-la e garantir seu lugar no poder. Em cenários de incerteza, os cidadãos tendem a trocar liberdade por segurança.

De quanto tempo estamos falando quando falamos sobre declínio das democracias?

No século XX, a maioria das democracias que voltaram a ser autocracias o fizeram por meio de golpes militares. Foi o que aconteceu na Espanha e em muitos países latino-americanos. Quando isso acontece, a mudança é imediata, praticamente de um dia para o outro. Hoje, essa transição é mais lenta e diferente. É o que chamo de “efeito Orbán” [em referência ao primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán]. Políticos populares participam de eleições reais, se elegem legitimamente e, uma vez no poder, começam a se livrar das limitações ao seu próprio poder por meios legais. São mudanças realizadas no longo prazo que parecem pequenas, insignificantes. Os cidadãos muitas vezes não entendem as implicações disso se um líder estiver gerando crescimento econômico para o país durante esse período. Orbán, basicamente, apresentou o manual para outros aspirantes a ditadores como Bolsonaro e Trump.

O ataque às sedes dos três Poderes em Brasília tem sido comparado à invasão do Capitólio. O que a democracia brasileira pode aprender com o exemplo dos EUA?

Os cidadãos precisam se envolver, não podem ficar à parte e esperar que a democracia sobreviva sozinha. Nos EUA, os americanos só agora estão começando a perceber que, se não prestarem atenção, se não se mantiverem informados sobre o que está acontecendo, se não saírem para votar, os extremistas vão capturar o governo e acabar com a democracia. Vimos na Primavera Árabe o poder e a eficácia de protestos maciços mesmo contra líderes armados e fortes. Precisamos de uma sociedade civil forte, de cidadãos engajados e atentos ao que os políticos estão fazendo para a democracia sobreviver.

Bolsonaro recebeu mais de 58 milhões de votos no 2º turno, e muitas dessas pessoas acreditam que as eleições foram roubadas…

Novamente, essas coisas tendem a acontecer em tempos de transição. Aqui nos EUA, os brancos estão se tornando uma minoria da população, e há uma parcela desse grupo que se sente enormemente ameaçada por isso, porque consideram que é um direito dado por Deus aos EUA rural. O Brasil está passando por uma mudança demográfica semelhante: onde os brancos eram maioria, eles não são mais. É uma mudança muito recente, e Bolsonaro joga diretamente com esse medo e essa sensação de que os brancos merecem governar no Brasil. É um sentimento poderoso que as pessoas têm se acreditarem que um país é deles por direito, elas serão motivadas a tomar as medidas necessárias para manter o controle.

As democracias estão fadadas a ciclos de instabilidade?

Se uma democracia for bem desenhada, não precisa ser assim. Se as instituições forem fortes, se houver muitos pesos e contrapesos contra o Executivo, se houver uma sociedade civil forte, haverá também uma comunidade empresarial saudável. Pense na Dinamarca e em alguns dos sistemas parlamentares da Europa Ocidental. O problema é que, se suas instituições são fracas, ou permitiram que se tornassem mais fracas, é possível que as corporações e o dinheiro comecem a corromper o sistema, como está acontecendo nos EUA. Sempre haverá indivíduos como Trump e Bolsonaro para explorar e tirar proveito disso. Mas eles não terão sucesso se houver restrições na sociedade, nos negócios e no governo para tornar impossível a tomada do poder.

Depois de Trump, os EUA ainda são uma democracia?

Os EUA caíram em uma zona intermediária [entre a democracia e a autocracia] chamada anocracia durante o governo Trump. Isso melhorou desde então, voltamos à zona da democracia, mas ainda não está perfeito. Temos um novo presidente que respeita o Estado de Direito, acredita na democracia e que se perder a próxima eleição, transferirá o poder pacificamente. Mas as nossas instituições não foram reformadas e fortalecidas. As mesmas vulnerabilidades de antes continuam existindo, então podemos retroceder rapidamente mais uma vez.

Existe risco de guerra civil?

Não creio, mas sabemos que o risco de guerra civil onde políticos se organizam em torno de raça, religião ou etnia cresce em torno de 4% ao ano se as reformas necessárias não forem feitas. Parece pouco, mas não é. Em 10 anos, seu risco será de 40%; em 20 anos, de 80%. Os EUA têm tempo para mudar algumas características realmente antidemocráticas, como o sistema de votos e a regra de obstrução [em votações no Congresso], mas essas mudanças precisam ser feitas.

Um comentário:

Fernando Carvalho disse...

Notei que para Barbara Walters existe um sujeito social importante quando a democracia está em jogo: os negócios, a comunidade empresarial e as corporações golpistas.