Eu & / Valor Econômico
Há no Congresso uma bancada da Bíblia,
empenhada no enquadramento dos outros em valores de sua crença em vez de
enquadrar-se nos preceitos e valores da Constituição que legitima sua diferença
Neste momento, onde estão as vozes que falam
pelo povo brasileiro e nos dizem o que ele se tornou, com os transtornos
políticos dos últimos tempos e a ação de grupos reacionários que se empenham em
criar um estado de baderna e de desorganização social e política para assegurar
seu poder de toscos e incivilizados?
Entre 2003 e 2022, o lugar de referência da
fala política brasileira deslocou-se de cenário. Passou lenta e ocultamente das
classes sociais e subclasses para as corporações de interesses antissociais.
Basicamente porque a mudança do lugar da fala foi também mudança do ator que
fala.
Aqui, desde os anos da ditadura militar, a rua tornara-se o lugar de expressão dos que tinham o que falar mas não tinham lugares de dizer. Isso tem expressado a desigualdade da representação política e o decorrente fato de que nem todos estavam ou estão representados nas instituições destinadas a isso.
Nos últimos anos, há, no Congresso, uma
bancada da Bíblia, empenhada no enquadramento dos outros em valores de sua
crença em vez de enquadrar-se prioritariamente nos preceitos e valores da
Constituição que legitima sua diferença.
Já me referi aqui que a República separou o
Estado da religião. Com esse ato, legitimou o direito dos evangélicos à
diferença, para serem e não para negarem a pluralidade da diferença e o direito
dos outros a ela.
A República universalizou a individualidade
do direito de crença e de opção religiosa. Democratizou o exercício da fé e até
mesmo atenuou e relativizou, em vários casos, as doutrinas em relação à sua
interpretação. Abriu caminho para a criatividade religiosa, embora tenha
tornado cada vez mais evidente o oportunismo confessional como instrumento de
manipulação política mais do que de expressão da fé, que anula a política e a
desconstrói. Sobretudo porque veta a democracia ao vetar o direito à diferença
religiosa.
A lenta e prudente disseminação do
protestantismo no Brasil alterou as referências sociais de conduta de quem se
converteu, mas também de quem não se converteu, na medida em que a sociedade é
relacional e nesse sentido ressocializadora a partir das mudanças que admite
para alguns. Transforma e inova ao modificar os termos do relacionamento
social.
Apesar do autoritarismo protestante, tão
acentuado e intolerante nos séculos iniciais, que, no essencial se conserva, o
protestantismo disseminou a cultura do livre exame da Bíblia e, portanto, uma
das bases do pensamento crítico e politicamente transformador.
É significativo que, quando da fundação da
Universidade de São Paulo, em 1934, seu inventor e criador, Júlio de Mesquita
Filho, diretor do jornal “O Estado de S. Paulo”, estabeleceu que ela deveria
ser pública, laica e gratuita, isto é, democrática. Orientou o professor
Teodoro Ramos, da Escola Politécnica, matemático e positivista, enviado à
Europa para recrutar professores: nada de clericais.
Pude compreender melhor o sentido dessa opção
na cultura uspiana quando, professor catedrático na Universidade de Cambridge,
fui convidado pelo master de St. John’s College para as celebrações da festa de
São João Batista, na capela.
O sermão teve como título “A contribuição do
calvinismo no desenvolvimento da ciência em Cambridge”. É significativo que um
dos cientistas que revolucionaram a ciência no século XIX foi um cientista com
formação em teologia, Charles Darwin, o pai da teoria da evolução, com o livro
“A origem das espécies”. Exatamente o contrário de tudo que se diz sobre ele e
sua teoria, especialmente em igrejas evangélicas.
O fato de haver em nossas casas legislativas
a esquisita presença de uma bancada da Bíblia não quer dizer que nossos
políticos evangélicos perfilhem os valores e a cultura da verdadeira tradição
protestante nem quer dizer que a conheçam.
Há exceções, como a da senadora Eliziane
Gama, maranhense, evangélica e filha de pastor pentecostal, que tem uma límpida
biografia de compromisso ético e político com os valores da democracia em nome
de sua fé, o que se reflete nas orientações que adota em face das questões
candentes dos embates parlamentares.
E há, também, a do Pastor Henrique Vieira,
fluminense, da Igreja Batista do Caminho, com três bacharelados, em ciências
sociais, teologia e história. Excepcional conhecedor da Bíblia, faz parte do grupo
de ministros evangélicos que entrou na política para o confronto desconstrutivo
com as insuficiências teológicas e bíblicas de ativistas do fundamentalismo.
Sua veemente e erudita contestação da interpretação anticristã da Bíblia na
recente questão dos costumes foi um momento memorável na presença de um
evangélico como ele na Câmara: a de um civilizador da política.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras Entre outros livros, é
autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do
instante” (Editora Unesp, 2021).
Um comentário:
O espiritismo,que também é cristão,acredita na teoria evolucionista de Charles Darwin,é só ler ''A Caminho da Luz'',o melhor livro do mundo sobre fé e ciência.
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