Valor Econômico
Se for aprovada no Congresso a proposta de
tornar os mandatos do STF temporários, o Judiciário pode se tornar departamento
do Legislativo
O “Livrinho” de 1988, nome que o presidente
Gaspar Dutra dera à Constituição de 1946, acaba de completar 35 anos de
promulgação e vigência. Especialmente como instrumento de resistência contra a
tentação de ditadura própria da boçalidade das minorias formadas na tradição
dos feitores de senzala e dos capitães do mato que deixaram entre nós sua
persistente cultura autoritária.
Infelizmente, nem o “Livrinho” escapou dos
truques e das armadilhas da voracidade de poder dos que ainda não compreenderam
que na democracia a categoria que governa é o povo, a entidade política
abstrata cuja identidade e cuja função se definem na Constituição.
No entanto, um item de concepção subversiva do poder está lá. É no artigo 142 que, supostamente, mas não de fato, dá às Forças Armadas a função de tutelar a sociedade e o povo em vez de colocá-las sob a indiscutível tutela da Constituição, mesmo nas crises.
Nestes dias, surgiu, na Câmara dos Deputados,
o movimento de tornar temporário o mandato dos ministros do Supremo Tribunal
Federal. Abreviado, ele se tornaria vulnerável ao mandonismo de outro poder
historicamente marcado pela lógica da troca de favores.
Pode-se imaginar que, se aprovada essa
iniciativa, as indicações para o STF entrarão nos leilões do poder subordinadas
à troca de favores entre facções políticas. Os mandatos da Suprema Corte se
tornarão instrumentos da incerteza política e dos pequenos poderes infiltrados
na estrutura do Estado. O Judiciário se tornará departamento do Legislativo.
Por mais honrado como é e deve ser cada
ministro do STF, a transformação do seu mandato em mandato periódico o tornará
mandato leiloável e precário. O tempo dos mandatos de substituição periódica do
ocupante é o oposto do tempo da sociedade e do Estado. Nesse sentido, o tempo
de uma Suprema Corte é outro.
Uma coisa é certa. O país deve à Suprema
Corte, justamente devido à autonomia e a vitaliciedade do mandato dos
ministros, a corajosa resistência contra os sucessivos atos em conflito com a
Constituição, contra a democracia e em favor da tirania das minorias
autoritárias.
O empenho em criação de brechas para cassação
do mandato de ministros do STF constitucionalmente indóceis à voracidade de
impunidade no governo anterior indica que tipo de mentalidade advoga em favor
dessa mudança.
O STF tem sido protagonista de decisões sem
as quais a democracia teria deixado de existir entre nós. O país teria se
tornado colônia de minorias obscurantistas, nascidas da persistência do
mandonismo dos donos de terra e de gente. Ele tem sido a mais veemente de
nossas instituições de Estado em defesa do que podemos e precisamos ser para
que o Brasil se torne de fato um país de gente grande e livre.
A Constituição e o STF se completam. A de
1988 é a mais vibrante de todas as Constituições que já tivemos. Dentre as
muitas novidades históricas, é nela a primeira vez que o povo deixa de ser mero
e abstrato conceito. Ela começou a nascer nas ruas, na campanha das Diretas,
Já! A pluralidade do povo chamado a dizer como queria ser governado.
Na Constituinte, a diversidade das vozes
sociais e das caras do país esteve presente. Impediu que se renovasse o abismo
que separava o Estado do povo, as necessidades sociais das leis que as
legitimam. Abriu brechas no ímpeto de usurpação da voz e da consciência dos muitos
que constituem a nossa pluralidade antropológica e nela a nossa singularidade
histórico-social.
Na reação ao projeto social, econômico e
político autoritário da ditadura de 1964, os trabalhadores do campo e da cidade
tornaram-se sujeitos de vontade e representação política. Os povos indígenas,
apoiados por cidadãos e entidades democráticos, reagiram à repressão política
que pretendia cercá-los e anulá-los.
Descobriram as irracionalidades e
fragilidades do poderio branco, nas intenções genocidas, na voracidade de
riqueza e na voracidade de poder. Tornaram-se sujeitos de identidade política,
social, cultural e econômica. A Constituição reconheceu-lhes as singularidades.
Indígenas chegaram ao Congresso Nacional. Com
o governo eleito em 2022, a diversidade brasileira, pela primeira vez, subiu a
rampa de acesso ao Palácio do Planalto e ao poder com identidade própria. O
cacique Raoni, com seu solene diadema plumário, participou da cerimônia como
indígena, em nome da diversidade de seus povos, e não por meio de interpostas
pessoas. O mesmo com negros. Já houve negros no Parlamento, mas até agora
negros que pensavam e falavam como brancos.
E um operário, pela primeira vez em nossa
história, recebeu um terceiro mandato de presidente da República graças à
Constituição e ao TSE e ao STF que vigiaram para que suas regras prevalecessem.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante”
(Editora Unesp, 2021).
Um comentário:
O distinto sociólogo/professor José teme que o STF se transforme em departamento do legislativo.
O STF hoje já é um departamento, só que do poder executivo, a serviço de presidentes titulares, reservas e de ex presidentes.
É a forma de indicação de nomes para o STF que precisa mudar para que o STF deixe de ser departamento de qualquer coisa e passe a ser efetivamente o Superior Tribunal Federal (De preferência com o nome mudado para "Tribunal Constitucional").
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