quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Malu Gaspar - CPI do 8 de janeiro deixa enigmas do golpismo bolsonarista sem solução

O Globo

A sessão da CPI dos Atos Golpistas que aprovou o relatório responsabilizando Jair Bolsonaro e mais 60 pessoas foi palco do teatro que caracteriza eventos do tipo. Aplausos, apupos, agradecimentos emocionados, discursos inflamados e embates duros. Governistas gritavam “sem anistia”, bolsonaristas gritavam “vergonha”.

O líder de Lula no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), agradeceu à oposição por ter insistido tanto para instalar a comissão, enquanto oposicionistas bradavam contra o “relatório do Flávio Dino” e reclamavam do indiciamento de pessoas que nem sequer haviam sido ouvidas.

Respondendo a uma crítica comum ao documento de 1.333 páginas, seu presidente, Arthur Maia (União-BA), reconheceu que “pode ser que [a CPI] não traga nada de novo, mas trouxe a verdade na praça pública, porque aqui não há sigilo”.

Até aí, jogo jogado. Quem já acompanhou uma CPI sabe que é um fórum político por excelência. Por isso mesmo, não é irrelevante que o relatório final tenha recomendado o indiciamento de 29 militares e PMs, incluindo oito generais e dois ex-comandantes das Forças Armadas de Bolsonaro: o almirante Almir Garnier e o general Marco Antônio Freire Gomes.

Nunca houve tantos militares enredados numa CPI na História do Brasil. Não deixa de ser um feito, considerando o esforço de comandantes e parlamentares de todos os matizes para evitar constranger os fardados.

Mas pode-se dizer que era inevitável, dado o papel inequívoco que uma ala numerosa e poderosa das Forças Armadas desempenhou na blindagem institucional de Bolsonaro e no boicote à credibilidade do sistema eleitoral.

Mesmo assim, não dá para ignorar que muitos interrogatórios importantes e necessários não foram feitos — como o do próprio Bolsonaro ou de seu ex-candidato a vice, Walter Braga Netto.

Além disso, vários indiciamentos foram pedidos com base em deduções, interpretações e até na célebre “teoria do domínio do fato”, tão criticada pela esquerda quando o então ministro do STF Joaquim Barbosa a usou para atribuir as responsabilidades a integrantes do governo Lula 1 no julgamento do mensalão.

Embora seus defensores digam que a CPI foi prejudicada pelo STF, que liberou investigados de depoimentos e suspendeu o acesso à quebra de sigilos, não dá para saber o que ela teria descoberto se não tivesse havido tantas blindagens e acordos de bastidores.

Algumas perguntas mais importantes para esclarecer como a nossa democracia chegou tão perto do abismo ainda continuam no ar.

Não há dúvida de que Bolsonaro queria uma intervenção militar e trabalhou o tempo todo para incitar o golpismo entre seus seguidores e na população. Mas qual foi seu real papel nos acontecimentos que levaram ao ataque às sedes dos Três Poderes? Ele encomendou ou não minutas de golpe a auxiliares? Quantos desses rascunhos foram feitos? O que exatamente ele pediu aos comandantes, especialmente ao do Exército, nas reuniões a portas fechadas?

É verdade que Freire Gomes se recusou a discutir um decreto que Bolsonaro queria usar para impedir a posse de Lula, como teria dito o ex-ajudante de ordens Mauro Cid em sua delação? Se teve conhecimento de um plano golpista, por que o comandante não desmobilizou o acampamento que ficava na porta de seu Q.G., de onde partiram invasores no 8 de Janeiro? Que tipo de informação sua inteligência tinha sobre o acampamento? Até que ponto se estendia a infiltração de integrantes da tropa de elite do Exército, os kids pretos, entre os golpistas?

Se, como sugerem algumas evidências, havia dois planos correndo em paralelo — a organização de atos incendiários para questionar o resultado da eleição e a preparação de decretos de intervenção que usariam a desordem como justificativa —, quem fazia o elo entre os dois núcleos? Afinal, quem financiou a máquina digital de conspirações e fake news que levou ao 8 de Janeiro?

Finda a CPI, todas as expectativas se voltam à Polícia Federal, que tem não só a delação de Cid, mas também dados bancários, telefônicos, de e-mails e monitoramentos de inteligência. Nas conversas com integrantes das Forças Armadas e do Congresso, o ministro do STF Alexandre de Moraes, que comanda a apuração, costuma dizer que espera concluir o trabalho até o fim do ano.

Se for isso mesmo, falta pouco. Mais importante que o prazo, porém, é chegar ao maior número possível de respostas. Sem isso, será impossível responsabilizar e punir devidamente quem trabalhou contra a democracia, e sempre sobrará espaço a teorias conspiratórias e narrativas de vitimização.

 

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