domingo, 7 de janeiro de 2024

Míriam Leitão - História do golpe e do contragolpe

O Globo

Com a ajuda do tempo, os atores daqueles dias entendem que houve uma sucessão de acertos para a derrubada da tentativa de golpe

Não há mais dúvida razoável de que houve tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. É importante entender o que derrotou o golpe. Hoje, com a ajuda do tempo, o que os atores daqueles dias entendem é que houve uma sucessão de acertos. A mais importante decisão do presidente Lula foi a de não aceitar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem. A GLO era parte da trama. A segunda foi ele vir para Brasília, voltando de Araraquara (SP), e estar pessoalmente, naquela noite mesmo, nos espaços atacados. Terceira, a união dos comandos dos Três Poderes.

Lula saía do Palácio do Planalto, onde andara sobre os escombros, e entrava no carro quando alguém disse que a ministra Rosa Weber estava no palácio do STF. Lula disse: “Vamos lá no Supremo agora”. Ele atravessou a praça e foi ao prédio. Encontrou a presidente, ao lado dos ministros Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli. Verificou pessoalmente a dimensão da violência feita contra o Supremo, e disse à ministra:

—Ministra, quero lhe assegurar uma coisa. Eles vão pagar por isso. Isso não ficará assim.

A própria presidente Rosa conta que teve dois sentimentos ao ver as cenas de invasão do STF. Uma pancada no peito como se algo físico a atingisse e, no mesmo momento, o impulso de resistir.

Lula convidou a ministra para uma reunião na primeira hora do dia seguinte. Esse foi o encontro dos Poderes. Os bastidores da reunião entre eles é interessante por revelar outro momento decisivo. Estavam numa sala do Palácio do Planalto treze autoridades dos poderes. O Senado, representado pelo vice-presidente Veneziano Vital do Rêgo. Vários ministros do governo. O presidente da Câmara, Arthur Lira, perguntou se o processo sobre os atos de 8 de janeiro poderia ser distribuído para outro ministro, em vez de Alexandre de Moraes, que estava com o inquérito dos atos antidemocráticos. Lira temia reação política ao nome do ministro.

Todos olharam para Rosa, a única mulher presente. Ela foi peremptória.

— O relator é o Alexandre.

Com decisões certas, nas horas exatas, foi sendo desfeito o golpe que havia sido uma longa urdidura do governo anterior, através das falas de ódio contra o Supremo e alguns ministros em particular, com os ataques às urnas eletrônicas e ao processo eleitoral, e o contínuo cortejo aos militares e às polícias. Hoje, quando se olha para trás, para aquele dia que nunca terminou e que ainda nos ensina, os participantes diretos dos eventos relatam como foi por um triz que a democracia prevaleceu.

Os golpistas perderam o calendário. Talvez a história fosse outra se tivessem feito isso logo após as eleições, ou se tivessem conseguido ampliar os atos do 12 de dezembro, ou na véspera do Natal, quando houve a tentativa de explosão de um caminhão com combustível no aeroporto de Brasília. O plano era fazer o levante, ter apoio das polícias militares, de setores das Forças Armadas e provocar o efeito dominó. Se fosse com o presidente anterior, o desfecho poderia ser terrível. E, naquele próprio dia 8 de janeiro, se as autoridades não tivessem tomado as decisões certas, também o enredo poderia ser diferente.

A decisão dos comandantes militares de estarem presentes no ato do Congresso amanhã é significativa. Como me disse uma fonte militar.

— É um evento institucional e a presença das Forças Armadas, uma das instituições comprometidas com a democracia, é essencial. Se fosse um ato político não poderíamos participar.

Essa compreensão das atuais lideranças militares faltou aos governadores bolsonaristas. Não é um ato de um grupo político, é uma manifestação institucional. Há espaço para a direita e para a esquerda no jogo político. Só não há espaço para os que conspiram contra a democracia. Eles foram todos eleitos pelo voto popular e devem honrá-lo. O governador Tarcísio de Freitas, por exemplo, o que teria pensado, se os que não votaram nele tivessem invadido e depredado o Palácio Bandeirantes para tentar apeá-lo do poder que ele legitimamente conquistou?

O que está faltando à direita brasileira é separar-se do extremismo e comprovar que é democrata. Joio e trigo devem estar em vasos separados. Pelos valores comuns da democracia todos têm que estar dispostos a passar por cima de eventuais diferenças políticas em momentos como o 8 de janeiro. A democracia, que nos custou tão caro, resistiu, apesar de ter sofrido o pior ataque em 38 anos.

 

4 comentários:

Daniel disse...

Excelente! Em 9/10, o filósofo bolsonarista Denis Rosenfield, na sua coluna que intitulou "Golpe?" com PONTO DE INTERROGAÇÃO, fez uma meticulosa e TENDENCIOSA argumentação DESCARTANDO que tenha havido tentativa de golpe em 8/1. Segundo ele, "O que houve no 8 de Janeiro foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com seus fiéis ainda acreditando numa narrativa ‘revolucionária’ evanescente". Ou seja, não houve apoio militar e nem participação deste setor, nem tentativa articulada dos bolsonaristas, nem cumplicidade das forças militares e de segurança com os golpistas, enfim, foi quase um dia normal para os revoltados patriotas bolsonaristas. O pseudofilósofo demonstrou naquela coluna sua habitual despreocupação com a verdade, e mostrou sua usual TENDENCIOSIDADE de prestigiar/defender militares, conservadores e outros membros e interesses da Direita ou do Conservadorismo, que o levou a APOIAR BOLSONARO na eleição de 2018.
https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/10/denis-lerrer-rosenfield-golpe.html#more

ADEMAR AMANCIO disse...

Verdade.

Murilo Murça de Carvalho disse...

Miriam usou, adequadamente, o slogan do mais conhecido e reputado noticiário do rádio antigo, o Repórter Esso (Heron Domingues etc) "a notícia certa no momento exato". Gostei.
t

Daniel disse...

Os bolsonaristas tentam de todas as formas MINIMIZAR a importância da tentativa de golpe e evitar as óbvias relações de Bolsonaro com os manifestantes.