Folha de S. Paulo
No Rio Grande do Sul, o extremismo político
encontrou o evento climático extremo
Negacionistas não somente rejeitam a
verdade. Sequer
participam de disputa sincera pela verdade. Não estão interessados. Todo
negacionismo é, antes, negação da responsabilidade que a verdade imputa.
Estratégia diversionista, esconde causalidades entre ações e consequências. E
rejeita a norma jurídica ou moral que sanciona o comportamento danoso.
Não se equiparam aos sofistas ou aos céticos,
nem aos ateus ou agnósticos. Estão mais próximos ao que Harry Frankfurt chamou
de "bullshiters". Diferente do mentiroso e do hipócrita, que conhecem
a verdade e sabem que mentem, o "bullshiter" tem indiferença à
verdade e joga outro jogo. Sua empreitada não é intelectual, mas política e
sectária.
Muitos negacionismos contaminam a conjuntura brasileira: negacionismo do golpe, da ditadura, do racismo, da homofobia, dos conflitos de interesses da magistocracia, da corrupção e do autoritarismo; dos efeitos da desigualdade e da boçalidade pública; da correlação entre liberação de armas e aumento de homicídios, parecido com o da causalidade entre cigarro e câncer; do dever constitucional de manter o meio ambiente equilibrado e do direito de gerações presentes e futuras.
Não interessa ao negacionista cultivar o
hábito intelectual da dúvida nem a atitude política da desconfiança. Quer
apenas destruir inimigos com a melhor arma em mãos. É uma técnica sintonizada
ao extremismo político, hoje armado de canhões desregulados de desinformação
com alta precisão algorítmica. Financiar a fabricação de negacionismo com cara
de ciência é
comum a indústrias que impactam a saúde e o
meio ambiente.
O Rio
Grande do Sul sedia nesse momento o encontro do extremismo político
com a desigualdade extrema e o evento
climático extremo. Ainda não conhecemos todos os danos que uma reunião
explosiva desse calibre produz, mas já somos capazes de perceber a
multiplicação desnecessária e discriminatória de mortes, sofrimento e
empobrecimento material.
Negacionistas têm tentado corroer o esforço
da sociedade e do Estado brasileiro em enfrentar as consequências da tragédia.
Sua produção torrencial de notícia falsa se dirige a bloquear e deslegitimar
iniciativas estatais de ajuda aos atingidos.
Em paralelo, a solidariedade social,
traduzida na dedicação voluntária de indivíduos e organizações, em colaboração
com esforços públicos, é tumultuada por oportunistas que, mais do que
participar, tentam individualizar os méritos do heroísmo coletivo em redes
sociais.
Nesse momento, o negacionista luta dois
combates: um contra o Estado, cujas instituições precisam continuar a ser
evisceradas de capacidade de compreender a estrutura do desastre, de preveni-lo
e de responder a ele; outra contra o conhecimento que demonstra, justamente, a
relação de causalidade entre o que o negacionista faz e a consequência para a
coletividade.
A tragédia precisa ser desvinculada da ação
negacionista. O negacionista precisa ser exonerado de sua responsabilidade.
Exemplos recentes da responsabilidade
negacionista: o governo do RS ignorou plano de prevenção a desastres desde
2017; flexibilizou regras sobre barragens em áreas de preservação permanente;
enfraqueceu o código florestal; o Congresso
Nacional vem desmontando a proteção ambiental nos últimos anos e tenta
aprovar o "pacote da destruição" com mais de 20 projetos contra o
meio ambiente. O governo federal não dá sinais de ter
a causa da proteção ambiental como prioridade.
Ainda não conseguimos construir ferramentas
de responsabilização de organizações, empresas e atores políticos que,
desinteressados nas consequências humanas e econômicas do que fazem, e ansiosos
por ganhos de curto prazo, contribuem para o desastre. Nem conseguimos
construir instituições que traduzam o compromisso constitucional da precaução
em prática real.
Enquanto isso, os negacionistas estão matando
e vão continuar a matar.
2 comentários:
Muito bom!
A única saída é amar o próximo como a ti mesmo,simples assim.
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