O Estado de S. Paulo
Anos depois, lendo o jornal, Gabriel terminou por descobrir a identidade de seu potencial ‘sogro’. Era nada mais nada menos do que o comandante dos campos de Treblinka e Sobibor
O pai gostava de contar histórias para sua
filha antes de dormir. Se fosse o caso, cantava canções de ninar: uma pessoa
normal, plena de dedicação. Tudo aparentemente de acordo com a convivência
familiar, como se esse cotidiano fosse a regra, não admitindo nenhuma exceção.
No entanto, seu trabalho de policial já tinha sofrido uma grande alteração,
tanto em termos financeiros como de prestígio. A partir do momento em que os
uniformes pretos da SS passaram a frequentar a sua casa, sua vida já era
totalmente outra.
Ascendeu na carreira, exibia uma eficiência acima do comum no genocídio de judeus, homossexuais e ciganos, tendo também se destacado no assassinato de deficientes mentais. Tornou-se, por seus feitos, comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor. Seu nome era Franz Stangl. Mais propriamente poderia ser denominado de especialista no culto da morte e em sua organização em uma máquina de extermínio. No entanto, continuava a ser um pai carinhoso. Nele conviviam a aparente doçura do pai e o monstro, dedicado, em outro sentido, à maldade.
Finda a guerra, fugiu para a Síria, onde pôde
novamente pôr sua “qualificação” a serviço do Exército e de seu serviço de
inteligência, pois, sendo um especialista da tortura, poderia bem vender os
seus préstimos. Ademais, continuaria colaborando com o extermínio dos judeus,
naquele então lutando pelo estabelecimento do Estado de Israel e, depois, em
sua consolidação. Mudou de lugar, mas não de convicção. No entanto, um alto
funcionário sírio quis com ele acertar o seu casamento com sua filha, prestes a
completar 14 anos. Não querendo comprometer o seu futuro, conseguiu graças a
seus parceiros nazistas fugir para o Brasil, onde se tornou um trabalhador da
Volkswagen. Na ocasião, o pai primou sobre o monstro!
Nesse meio tempo, um jovem húngaro, Gabor
(Gabriel Waldman, Ingrid, a Filha do Comandante, com prefácio de Celso Lafer e
posfácio de Marcio Pitliuk, Buzz Editora), tinha se estabelecido no Brasil,
depois de vagar pela Áustria com sua mãe. Eram pessoas abandonadas no mundo,
não tendo a quem recorrer. A fome, a solidão e a ausência de esperança os
habitavam. Seu pai e toda a sua família tinham perecido nos campos. Viveram no
imediato pós-guerra na Hungria, que tiveram de abandonar dada a instalação de
uma ditadura comunista. De um mal a outro! Aportaram em nosso país em 1952, em
busca de uma nova vida. No entanto, a maldade continuava à sua espreita, embora
não o soubesse.
Tendo aprendido nosso idioma, inscreveu-se em
um curso de madureza para concluir seus estudos. Eis que, um dia, uma bela
mulher loira irrompe em sua sala de aula, cabelos esvoaçantes, e sentase ao seu
lado. Foi uma paixão instantânea, tendo como idioma o alemão. Era, ainda, do
ponto de vista de seu trabalho, chamado como intérprete em empresas alemãs,
conferindo a essas um ar de normalidade. O amor tudo apagava, um nem sabendo
nem se interessando pela vida do outro. Os corpos falavam a sua linguagem própria.
Acontece que foi convidado a uma festa de
amigos dela, quando, de imprevisto para ele, mas não para ela, foi levado a uma
casa vizinha para conhecer os seus pais. Foi a eles introduzido de uma forma
cordial, porém um pouco fria. O aperto de mão já anunciava que algo diferente
estava presente, embora não fosse diretamente anunciada qualquer anormalidade.
Ocorre que o pai era nada mais do que Franz Stangl. Aperto de mão em certo
sentido aterrador, pois estava convivendo com uma pessoa direta ou indiretamente
responsável pela morte de seu pai e de sua família. Era a mão da morte,
travestida da familiaridade de vida.
Gabor, agora Gabriel, nada sabia. Ingrid, sua
namorada, estava a par de tudo, embora achasse que estava autorizada a escolher
suas companhias. Um judeu na família do monstro. A atração dos corpos, todavia,
foi anulada pela decisão paterna de interromper essa relação, com medo,
provavelmente, de que sua identidade terminasse por ser revelada. Aos prantos,
a bela loira cortou seu relacionamento, deixando o seu companheiro perplexo.
Anos depois, lendo o jornal, terminou por
descobrir a identidade de seu potencial “sogro”. Era nada mais nada menos do
que o comandante dos campos de Treblinka e Sobibor, enfim revelado em sua
crueldade. Foi extraditado para a Alemanha, lá tendo sido julgado e condenado à
morte. Ingrid, símbolo do amor e da vida, tinha desaparecido, dando lugar à
morte enquanto expressão, por sua vez, do “mal existencial” ou do “mal
absoluto”. Significa: fazer o mal pelo mal e não como mero contraponto ao bem.
A natureza humana expõe assim todos os seus
enigmas. Uma pessoa em uma situação de normalidade, digamos, pode assumir uma
outra faceta, a de alguém dedicado ao culto do ódio e à destruição total do
outro. Perigo sempre presente, mormente em situações de guerra ou, mesmo, de
calamidade, onde o que há de melhor e de pior no ser humano comparecem
conjuntamente. O horror não cessa de estar presente!
Um comentário:
Verdade.
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